O presente estudo representa o olhar do pintor sobre as formas preliminares da natureza-morta em Portugal. Reúne uma série de conhecimentos para quem pretende obter ou prosseguir investigação sobre o tema, mas procura, também,...
moreO presente estudo representa o olhar do pintor sobre as formas preliminares da natureza-morta em Portugal. Reúne uma série de conhecimentos para quem pretende obter ou prosseguir investigação sobre o tema, mas procura, também, constituir-se um ponto de partida para enriquecer a contemplação desses «primeiros apontamentos», ato que institui a fruição e o valor de uso da pintura. Com efeito, foca-se o próprio movimento e interesse do olhar em certos arranjos de «objetos em inação», aos quais (devido à natureza transcontextual do olhar) chamamos «natureza-morta».
Na sua génese, a pintura de natureza-morta empenha-se na intensificação do «efeito da presença» das coisas comuns, sobre o qual explora, na sua época áurea (1600-1800), o efeito persuasivo do detalhe. Este exprime a intimidade com os objetos e com a pintura propriamente dita, daí resultando o prazer sensorial e a separação do espectador de um «modo de ver prévio». No contexto da «natureza-morta integrada» isto significará um desvio do contexto interpretativo dos temas que motivam as obras. É através do ato de aproximação visual da pintura, através dos detalhes/componentes de um sistema pictórico bastante mais amplo e complexo, que reconhecemos propriedades e valores pictóricos da natureza-morta. Na grande composição, eles desempenham funções plásticas/visuais, ao concretizar a introdução no espaço de representação e ao estabelecer contrastes sensíveis entre o «espaço proximal» e a ilusão da distância. Na relação de proximidade, exprimem uma «visão vacilante» da realidade representada. As várias análises técnicas que aqui realizámos revelam os processos de montagem de diferentes «modelos» e/ou «circunstâncias percetivas» num mesmo conjunto. Em todo o caso, defendemos que a «construção da presença» das coisas em pintura existe particularmente empenhada na re-produção dos efeitos das suas superfícies, traduzindo a «intimidade da presença». Este é um facto problemático, na medida em que, atualmente, as obras estudadas constituem uma imagem/corpo variavelmente alterada em relação ao que se possa imaginar do seu aspeto original.
Considerando o carácter potencialmente desviante ou distrativo destes detalhes em relação à mensagem central da OBRA, por via do efeito cativante da «intimidade da presença» que suscitam, desenvolvem-se, como contraponto, questões de sentido e significado dos «detalhes de natureza-morta». Abordamos um conjunto de funcionalidades da «natureza-morta integrada», dentro do sistema imagético que a acolhe, dentro da conceção da imagem sacra e «edificante» que institui a pintura portuguesa do século XVI. Em concreto, mostramos como é possível que tais arranjos designem (por vezes em simultâneo) tanto a ornamentação como a caracterização de uma cena, de uma ação, de um personagem, de uma cultura, de uma prática cultual, ou instituam mensagens teológicas profundamente simbólicas.
A análise final de uma série de «naturezas-mortas integradas» revela que o âmago do discurso que poderemos construir sobre elas reside substancialmente no «elo» que as une ao sistema físico e conceptual onde ganham presença. O próprio fascínio «realista» ou «naturalista» que muitos destes detalhes suscitam, constitui uma forma de nobilitação do sagrado a que a pintura oferece imagem, da mesma forma que certos «regimes de ordem» comportam um movimento espiritual e constituem a expressão de valores culturais e sociais. Na proximidade com a obra, ressaltam as excelsas qualidades representacionais e plásticas que constituem o objeto de profunda contemplação estética. A dinâmica de observação direta da pintura é, pois, o fator determinante para a predisposição psíquica do espectador, que assim frui e interpreta a imagem e os seus detalhes.