2019, CHAM & Húmus eBooks
escutando o último negreiro 373 rui zink* Escutando o último negreiro História e ficção Que contributo pode a ficção dar para o debate sobre a escravatura? Do ponto de vista da reconstituição histórica fidedigna, pouco. Mesmo quando escrita por historiadores tornados romancistas, a ficção é sempre um tecido de sentidos que, por definição, se independentiza do referente externo a que chamamos realidade. Aliás, a priori só há literatura (aventura estética) se tal acontecer. Todavia, alguma relação haverá entre o texto literário que se organiza em sistema autónomo de signos e o referente externo, o mundo-cá-fora. Um dos mais curiosos paradoxos da literatura é ela ser um facto, coisa feita, concreta e, ao contrário do passado histórico, uma realidade em si. Uma evidência, não no sentido da palavra homónima em inglês (evidence = prova), mas no de algo que, por estar cá-diante dos nossos olhosnão necessita de ser convocado. Aquilo que designamos por "ficção histórica", essa então, corre sempre vários riscos, dos quais sobressaem o da anacronia (sobretudo a nível das mentalidades, o de outorgar a uma personagem do século XVIII preocupações e utensilagem conceptual do XX) e o do equívoco na interpretação de um vestígio, um resto: confundir uma touca com um capacete, uma lareira com um forno, uma grade com uma grelha. Ao colocar um esclavagista-"o último", ainda por cima-como protagonista do seu romance, Miguel Real dá, consoante o ponto de vista, um passo corajoso ou insensato. Uma coisa pode ser dita: vem preencher uma lacuna. Continua actual o debate sobre o lugar da escravatura na historiografia portuguesa-e qual a relação que nós, portugueses, devemos ter com esse passado.