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Bartolomeu de Gusmão: Raízes de um Espírito Inovador incompreendido

2011, Bartolomeu Lourenço de Gusmão: o padre inventor

Abstract

~3P or que voar? No romance Memorial do convento, de José Saramago, há uma bela passagem na qual o padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724) afirma que […] na Holanda soube o que é o éter, não é aquilo que geralmente se julga e ensina, e não se pode alcançar pelas artes da alquimia, para ir buscá-lo lá onde ele está, no céu, teríamos nós de voar e ainda não voamos, mas o éter, deem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes, antes de subir aos ares para ser o onde as estrelas se suspendem e o ar que Deus respira, vive dentro dos homens e das mulheres. 1 Enquanto nessa obra o autor, com maestria, transpõe o mito do sonho de liberdade inerente aos humanos, para a história real de seu país, contribuindo para perpetuar esse sonho, nesse trecho específico há uma referência poética à motivação de voar, aludindo à relação entre Deus e o homem. Trata-se de atingir o éter inatingível pela alquimia, como se somente o voo e a consequente proximidade com o céu, a morada de Deus, nos permitisse conhecer aquilo que já vive Bartolomeu de Gusmão: Raízes de um espírito inovador incompreendido Autor Obra técnica, dimensões, ano acervo ~5~ Ba rt o l o m e u d e G u s m ã o d entro de nós. Portanto, voar -metáfora da liberdade de sonhar -é entendido como essencial ao conhecimento de nós mesmos e, como disse Paulo Freire, "é impossível existir sem sonhos". 2 Em outras partes desse livro, identificam-se semelhanças entre o padre Bartolomeu e Dédalo. Conta a mitologia grega que Dédalo inventou e construiu dois pares de asas com penas e cera, para que ele e seu filho pudessem fugir da ilha de Creta. Ícaro, seu filho, ignora a recomendação de não se aproximar do Sol, sob pena de ter suas asas derretidas, e acaba sofrendo uma queda mortal. O Sol é o astro luz por excelência e, ao longo da história da humanidade, tem-se recorrido com frequência à luz, e ao próprio Sol, para representar o divino, como entre os povos semitas, os egípcios, os iranianos e também na platônica associação do Sol com a ideia de Bem. 3 Pode-se considerar o fato de que mesmo na Antiguidade havia a percepção de que a luz era algo sutil e imaterial que se propagava no éter cósmico, perto dos astros (e assim pensaram os físicos até o início do século XX), transmitindo a ideia de liberdade entre o céu e a terra, nos dois sentidos. No Medioevo, por exemplo, a luz dos neoplatônicos desce do alto e se difunde criativamente nas coisas, enquanto a claritas de São Tomás de Aquino sobe a partir do baixo. 4 Não por acaso, muitos religiosos dedicaram-se ao estudo da óptica. Assim, desde a idealização da Torre de Babel, o homem não tem medido esforços para chegar aos céus como forma de alcançar Deus. Ainda no plano das ideias, deve-se destacar a enorme contribuição de São Francisco de Assis (1182-1226) ao apontar uma nova forma de se chegar até Ele. É preciso lembrar que o pano de fundo cultural da Idade Média cristã é dominado por um estado mental religioso. "O Livro" ou a Bíblia, nesse período, é o símbolo por excelência da relação entre homem e Deus na Weltanschauung cristã. Só aos poucos, a partir de São Francisco, é que vão ser apontados dois livros capazes de levar a Deus: A Sagrada Escritura e o Livro da Natureza, expressão consagrada por Dante Alighieri (1265-1321) e Galileu Galilei (1564-1642). Essa "nova via" está predestinada a dar impulso à arte e à ciência. De fato, São Francisco lança um olhar diferente sobre a Natureza, buscando, na simplicidade e na harmonia das coisas, a beleza suprema da obra divina. Como afirma Walter Nigg, Francisco enxergou a realidade verdadeira da criação, que nós só conseguimos captar por meio de comparações. Sentimos em todas as suas palavras a imagem vivã Ba rt o l o m e u d e G u s m ã o 4~A utor Obra técnica, dimensões, ano acervo