Academia.eduAcademia.edu

PRIMEIRO CAPÍTULO DE UM POSSÍVEL LIVRO DE TEATRO - 1997

CAP 1 Sou artista. Tenho 43 anos, 25 de teatro e uma profunda necessidade de dizer coisas. Continuo fazendo e querendo o teatro, porque acho que não sei fazer outra coisa. Nós vamos construindo armadilhas pra não deixar de realizar o que queremos, e acho que a vida inteira. O destino é isso: as armadilhas que a gente vai armando pra não sair de um caminho. Fiquei ligado ao teatro formalmente, emocionalmente, socialmente, politicamente. Esta ligação é muito forte. Tudo que eu construí parece não me permitir mais deixar de fazer teatro. Isso é como o destino nas tragédias: aquela coisa da qual não podemos nos livrar e ainda que corramos, fujamos, acabamos esbarrando nela. É da tentativa de fuga que surge a tragédia, porque você não pode se desprender de você mesmo, romper consigo. Outra coisa muito forte é que o teatro é uma forma de conviver. Engraçado, não vou na casa das pessoas, elas não vêm muito na minha casa, não tenho uma vida social intensa, e meus maiores amigos, que são quase insubstituíveis afetivamente, estão no mesmo trabalho que o meu, dividindo não só o meu espaço afetivo, mas também profissional. Então, o teatro é uma forma muito especial de estar com as pessoas, de trocar, de conviver, de construir, de ter e fazer sentido, de estar vivo... Como numa relação amorosa, você não constrói teatro sozinho. Foi assim que eu aprendi, no teatro universitário, quando comecei: era uma coisa de turma, de tribo, na qual o grupo todo tinha as idéias, construía o texto e se dirigia. Um estímulo básico para dirigir é se encantar com o ator no palco. Adoro quando vejo como ele é capaz de fazer coisas que não se faz normalmente ou só se faz em limites extremos. Por exemplo, Fernanda Montenegro no espetáculo Lágrimas Amargas de Petra von Kant: em cena, ela dizia eu te amo para a personagem de Renata Sorrah umas dez vezes seguidas, cada uma com uma entonação diferente. Isso era a coisa mais linda da peça inteira. Ali Fernanda mostrava a atriz que tem a possibilidade de dizer eu te amo de 200 formas diferentes na mesma hora, quase como um exercício. Era algo completamente pertinente e humano. Era real, pertencia à trama, ao personagem e também fazia parte da história de Fernanda Montenegro. Isso eu acho lindo: ver o ator exercitando a sua função.