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A tirania da tristeza em Deleuze - Lucas Dilacerda

2021, A tirania da tristeza em Deleuze - Lucas Dilacerda

A tirania da tristeza em Deleuze Lucas Dilacerda Gilles Deleuze (1925-1995) apresenta os conceitos de tirano e de tirania em diversas variações ao longo da sua obra. Em 1955, no texto Instintos e instituições, Deleuze afirma que “a tirania é um regime onde há muitas leis e poucas instituições” . Em 1962, no texto Jean-Jacques Rousseau - Precursor de Kafka, de Céline e de Ponge, Deleuze comenta que o tirano nasce das “relações artificiais demasiado humanas que, desde a infância, acarretam em nós uma perigosa tendência a comandar” . Em 1967, no livro Sacher-Masoch: o frio e o cruel, Deleuze destaca “o regime da lei como sendo ao mesmo tempo o regime dos tiranizados e dos tiranos” . Em 1972, no livro O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1, Deleuze e Guattari criticam um “Édipo-tirano” , responsável por produzir os afetos da falta, da culpa e do ressentimento frente ao desejo. Em 1975, no livro Kafka: por uma literatura menor, Deleuze e Guattari pontuam que a tirania funciona como um sistema de poder, que consiste em “fazer abaixar a cabeça” . Em 1980, no livro Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, Deleuze e Guattari diagnosticam uma “tirania das constelações significantes ou subjetivas” . Em 1983, no livro Cinema 1 - A imagem-movimento, Deleuze caracteriza a tirania como um estado da sociedade, que “faz da pequena diferença entre os homens o instrumento de uma distância infinita de situações” . Dentre as diversas variações e possibilidades dos conceitos de tirano e de tirania, presentes na obra de Deleuze, o objetivo deste texto não é redigir uma monografia sobre esse tema, mas apenas apresentar a relação genética entre o personagem do tirano e o afeto da tristeza. Problema fundamental da filosofia política Em 1972, no capítulo I As máquinas desejantes, do livro O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1, Deleuze e Guattari definem o problema da perversão do desejo como sendo o problema fundamental da filosofia política. O problema fundamental da filosofia política é ainda aquele que Espinosa soube levantar (e que Reich redescobriu): “Por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação?”. Como é possível que se chegue a gritar: mais impostos! Menos pão! [...] por que os homens suportam a exploração há séculos, a humilhação, a escravidão, chegando ao ponto de querer isso não só para os outros, mas para si próprios? Nunca Reich mostra-se maior pensador do que quando recusa invocar o desconhecimento ou a ilusão das massas para explicar o fascismo, e exige uma explicação pelo desejo, em termos de desejo: não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isso que é necessário explicar, essa perversão do desejo . Deleuze e Guattari desenham uma linhagem da filosofia política que tenta responder ao problema da perversão do desejo. Essa linhagem se inicia com a filosofia da imanência de Benedictus de Spinoza, passa pela psiquiatria materialista de Wilhelm Reich, e chega, por fim, na esquizoanálise da dupla. Neste texto, analisaremos o problema fundamental da filosofia política através das lentes do personagem do tirano. Superstição A questão “Por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação?”, definida por Deleuze e Guattari como sendo o problema fundamental da filosofia política, é tirada de empréstimo do prefácio do Tratado teológico-político, de Spinoza. Em 1665, no calor da revolução, Spinoza interrompe provisoriamente a escrita da Ética, para redigir o Tratado teológico-político, que é um manifesto em defesa da liberdade de expressão do pensamento. Em 1970, no capítulo I Vida de Espinosa, do livro Espinosa: filosofia prática , Deleuze afirma que o Tratado teológico-político, de Spinoza, tentava responder a cinco problemas : 1º) Por que o povo é profundamente irracional? 2º) Por que ele [o povo] se orgulha de sua própria escravidão? 3º) Por que os homens lutam “por” sua escravidão como se fosse pela sua liberdade? 4º) Por que é tão difícil não apenas conquistar mas suportar a liberdade? 5º) Por que uma religião [no caso da religião cristã] que reivindica o amor e a alegria inspira a guerra, a intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e o remorso? Em 1670, Spinoza publica anonimamente o Tratado teológico-político, e responde que a raiz desses problemas está na superstição, que nasce das ideias inadequadas da imaginação e da flutuação de ânimo que oscila entre o medo e a esperança. A superstição é a paixão triste que está na base que sustenta o poder político dos tiranos e o poder religioso dos sacerdotes. Por isso, Spinoza crítica as profecias, os milagres, os deuses transcendentes e tudo aquilo que nasce do desconhecimento e da imaginação inadequada, e por isso defende a separação entre o Estado e a igreja, entre a política e a religião, entre a filosofia e a revelação, entre o conhecimento natural e o conhecimento revelado. Assim, no prefácio do Tratado teológico-político, Spinoza afirma que “o grande segredo do regime monárquico e aquilo que acima de tudo lhe interessa é manter os homens enganados e disfarçar, sob o especioso nome de religião, o medo em que devem ser contidos para que combatam por sua servidão como se fosse pela salvação ”. Teoria dos afetos Em 1675, Spinoza conclui a escrita da Ética, mas por cautela, não a publica. Na Ética, Spinoza afirma que o Ser é um Deus imanente, cuja essência envolve a existência, é causa de si e causa eficiente e imanente de todas as outras coisas, é uma natureza naturante que produz as naturezas naturadas. Deus é uma substância única, composta de infinitos atributos, dentre os quais, o ser humano só percebe dois: o atributo pensamento e o atributo extensão. A mente é um modo do atributo pensamento, e o corpo é um modo do atributo extensão. O ser humano possui o conatus como a sua essência singular, que é o seu esforço de perseverar na existência, é a sua potência de agir do corpo e a sua potência de pensar da mente, que varia no encontro do seu corpo com os outros corpos, humanos e não-humanos, produzindo assim o afeto, definido por Spinoza, na Ética: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções [na mente]” . Ou seja, o afeto é uma afecção do corpo e, paralelamente, o afeto é também a ideia dessa afecção na mente, que modifica o conatus, aumentando ou diminuindo a sua potência de agir do corpo e de pensar da mente. Quando temos um bom encontro, ou seja, um encontro que produz um afeto que aumenta a nossa potência do agir do corpo e de pensar da mente, o afeto se chamará alegria, pois para Spinoza “a alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma perfeição maior” ; e quando temos um mau encontro, ou seja, um encontro que produz um afeto que diminui a nossa potência de agir do corpo e de pensar da mente, o afeto se chamará tristeza, pois para Spinoza “a tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma perfeição menor” . O que é um afeto no corpo é, paralelamente, um afeto na mente. Quando somos a causa adequada do encontro, o afeto será uma ação, ou seja, é ser sui iuris, que é estar sobre a potência de si ou ser senhor de si; e quando somos a causa inadequada do encontro, o afeto será uma paixão, ou seja, é ser alteris iuris, que é estar sob o poder do outro ou ser escravo. Para Spinoza, a nossa potência é a nossa essência singular. E essência, para Spinoza, não é algo fixo, imutável e a priori. Essência, para Spinoza, é a nossa potência, ou seja, é tudo aquilo que eu posso, é tudo aquilo que eu sou capaz de agir e de pensar. A tristeza diminui a nossa potência de agir e de pensar, e a alegria aumenta a nossa potência de agir e de pensar. A tristeza embrutece e atrofia a nossa potência, e a alegria conserva e expande a nossa potência. Por isso, Deleuze afirma que “a Ética de Espinosa não tem nada a ver com uma moral, ele a concebe como uma etologia, isto é, como uma composição das velocidades e das lentidões, dos poderes de afetar e de ser afetado nesse plano de imanência ”. Pois, a moral é deontológica, ou seja, é uma teoria do dever; e a ética é ontológica, ou seja, é uma teoria da potência. Por isso, “toda a Ética se apresenta como uma teoria da potência em oposição à moral como teoria dos deveres” . Diferença entre poder (potestas) e potência (potentia) Os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação porque são entristecidos pelo poder político dos tiranos e pelo poder religioso dos sacerdotes. Para Deleuze, a tristeza é uma impotência, ou seja, é um afeto que nos impede de realizarmos a nossa potência singular, a tristeza é uma barreira; já a alegria é uma potência, ou seja, é um afeto que nos possibilita realizarmos a nossa potência singular, a alegria é o desmoronamento da barreira.