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Vidência e esgotamento em Deleuze - Lucas Dilacerda2022
Vidência e esgotamento em Deleuze Lucas Dilacerda Imagem – Jota Mombaça, Pavimento nº 1: A fuga só acontece porque é impossível, 2021. A criação de um novo campo de possíveis é o que Gilles Deleuze (1925-1995) conceitua de acontecimento. No texto Maio de 68 não ocorreu (1984), escrito com Félix Guattari (1930-1992), eles afirmam que “o possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento. É uma questão de vida. O acontecimento cria uma nova existência, ele produz uma nova subjetividade (novos entrelaces com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho...)” . A criação de um novo possível, ou seja, a atualização do virtual, inteiramente real, pressupõe o rompimento com o antigo campo de possíveis. Para isso, é necessário atravessar a fronteira do limite que separa aquilo que é considerado possível e, em consequência disso, aquilo que é considerado impossível . No texto Por uma arte de instaurar modos de existência , apêndice do livro O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento (2013), Peter Pál Pelbart (1956-) afirma que “o acontecimento consiste precisamente nisto: uma mudança de perspectiva, de plano de existência” . Nesse sentido, o acontecimento modifica a nossa existência e o nosso modo de perceber o mundo. No texto Sobre Leibniz (1988), presente no livro Conversações (1990), Deleuze diz que “o acontecimento mais ordinário faz de nós um vidente” , pois vemos algo de novo surgir, uma nova possibilidade que pede para ser realizada. No texto Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política) (1998), François Zourabichvili (1965-2006) afirma que “um acontecimento político é do mesmo tipo: uma nova distribuição dos afetos, uma nova circunscrição do intolerável” . O acontecimento redistribui os afetos que estavam em jogo, nos tira de nossa inércia e anestesia política e provoca em nós um sentimento de intolerável. “Só podemos responder ao acontecimento, porque não podemos viver em um mundo que não mais suportamos” . Não suportamos mais viver neste mundo, e a partir desse afeto de “Eu não aguento mais” , “Eu não quero mais esse modo de vida”, esse sentimento que corta as nossas antigas correntes com o mundo, que o “o acontecimento consiste numa reviravolta de ponto de vista” , quando enxergamos uma nova possibilidade de vida. “Há acontecimento ou vidência quando alguém encontra suas próprias condições de existência, [...] exprime então, nesse sentido, menos uma tomada de consciência do que a eclosão de uma nova sensibilidade” . O acontecimento é a emergência de uma nova sensibilidade que se permite ser afetada pelas dores do mundo, pelo que ele tem de intolerável e, por isso mesmo, alcança uma nova existência. “A invenção de novas possibilidades de vida supõe, portanto, uma nova maneira de ser afetado. Deleuze insistia no conceito de ‘aptidão para afetar e ser afetado’, em Espinosa” . Imagem – Regina Parra, O impossível, 2020. Realização O impossível que o vidente vê é uma nova possibilidade de vida, que instaura uma sensibilidade capaz de ouvir o silêncio do tempo e de ver o invisível do tempo . “O vidente vê o possível e, com isso ascende a uma nova possibilidade de vida que pede para se realizar” . O vidente cria um novo campo de possíveis. Assim, é preciso distinguir o possível que se realiza do possível que se cria. “Há uma diferença de estatuto entre o possível que se realiza e o possível que se cria” . O possível que se realiza é o possível atual, é uma opção, uma alternativa que podemos fazer ou não fazer. O possível e o impossível são possíveis, mas de naturezas distintas. O possível é da ordem do atual e o impossível é da ordem do virtual, inteiramente real. Zourabichvili diferencia o “o possível” (com artigo definido “o”) do “um possível” (com artigo indefinido “um”): o “o possível” (com artigo definido “o”) “é o que pode acontecer, efetiva ou logicamente. [...] como uma alternativa ou como uma potencialidade” ; e o “um possível” (com artigo indefinido “um”) “é necessário entender então uma outra coisa: a palavra possível deixou de designar a série de alternativas reais e imaginárias (ou... ou...), o conjunto das disjunções exclusivas características de uma época e de uma sociedade dadas. Ela concerne, agora, à emergência dinâmica de novo” . Em suma, o campo de possíveis (com artigo definido “o”) são o conjunto de opções, ideias, sensações, modos de existência, modos de resistência e de “criação” que uma época nos impõe e nos faz crer ser a única possibilidade possível. O “um possível” (com artigo indefinido “um”), ou “um novo campo de possíveis”, é o impossível do tempo: o não-pensado, o não-dito, o não-visto, o não-sentido de uma época . Efetuação O possível como realização é uma opção, uma alternativa que pode ser realizada. De modo diferente, “afastando-se nitidamente do possível como instância de realização” , a efetuação, ao contrário, trata-se de criar um possível. “A efetuação concerte a um ato de criação, inesperável, desde então, de uma atualização” . Assim, a criação de um possível é a atualização de um possível virtual (o impossível). No texto Esgotamento e criação (2013), Pelbart afirma que a alternativa à realizar o possível seria “efetuar um possível ainda não dado, isto é, atualizar um virtual, afirmar uma nova sensibilidade” . Essa nova sensibilidade que emerge da criação de um novo possível não era realizável até então, essa nova sensibilidade é uma nova possibilidade de vida que o vidente enxerga. “Uma possibilidade de vida não é um conjunto de atos a realizar ou a escolher de tal profissão, de tal lazer, nem mesmo de tal gosto ou preferência particulares” . Uma possibilidade de vida não é uma realização, mas uma efetuação de um novo possível que permita reinventar uma vida frente ao intolerável do tempo. “O possível enquanto novidade, à diferença das alternativas atuais ou dos projetos de futuro, é objeto de efetuação, não de realização” . Para criarmos um novo possível, “era necessário que deixássemos de acreditar no possível como instância de realização” . É dessa descrença no possível como realização que nasce a possibilidade de emergência do possível como efetuação, ou seja, como criação . No texto Imagens do (nosso) tempo (2009), Pelbart comenta que “a questão muda de figura inteiramente quando o foco é não a realização dos possíveis (dados de antemão), porém a criação de possíveis (ainda não dados, portanto desconhecidos)” . O possível é criado pelo acontecimento. “O acontecimento não abre um novo campo do realizável, e o ‘campo dos possíveis’ não se confunde com a delimitação do realizável em uma dada sociedade” . O novo campo de possíveis criado pelo acontecimento era aquilo que era impossível, que não era realizável. Portanto, “por abertura de um novo campo de possíveis deve-se entender que aquilo que não era realizável se torna realizável” . É como se, de repente, aquilo que era impensável, se torna pensável, e aquilo que não se deseja, torna-se desejável. Como em uma manifestação, “tudo se revela possível ou realizável em um clima insurrecional” . De repente, quebrar um vidro se torna possível, pensável, imaginado, desejado. De repente, ocupar uma escola se torna possível, pensável, imaginado, desejado. É uma nova sensibilidade que emerge, uma nova possibilidade de vida que pede passagem. Imagem – Sejamos realistas, exijamos o impossível, 1968.
Como enxergar no escuro? A visão do invisível em Deleuze - Lucas DilacerdaComo enxergar no escuro? A visão do invisível em Deleuze Lucas Dilacerda Como ver o invisível? Como tornar visível o invisível? Essas são perguntas que atravessam a filosofia de Gilles Deleuze (1925-1995), que buscou compreender quais são as condições de possibilidade da criação de algo novo. Para Deleuze, a criação é pensar algo novo, sentir algo novo, imaginar algo novo, dizer algo novo. Portanto, criar algo novo é pensar o impensável (o não-pensado do pensamento), sentir o insensível (o não-sentido da sensibilidade), imaginar o inimaginável (o não-imaginado da imaginação), dizer o indizível (o não-dito da linguagem). Cf. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Paz & Terra, 2018b. No livro A imagem-tempo (1985), no capítulo Os componentes da imagem, Deleuze pensa o novo como “algo invisível e, no entanto, algo que só pode ser visto (uma espécie de vidência [...] o invisível que a vista só vê por vidência” (DELEUZE, 2018a, p. 376). A vidência [voyance] é a visão de algo novo, é o pensamento, a sensação, a imaginação e o entendimento de algo novo, invisível. No texto Maio de 68 não ocorreu (1984), escrito com Félix Guattari (1930-1992), Deleuze conceitua essa visão do invisível como "um fenômeno de vidência, como se uma sociedade visse de súbito o que ela continha de intolerável e visse também a possibilidade de outra coisa” (DELEUZE; GUATTARI, 2016, p. 245-246). Assim, a vidência é a visão do intolerável e a visão de um novo possível. O real é o plano de imanência, a própria multiplicidade. “Toda multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais” (DELEUZE, 1996, p. 49). Os elementos atuais são os possíveis atuais, e os elementos virtuais são os possíveis virtuais. O virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. O virtual é real, constitui o real. O vidente vê a parte virtual do real. O virtual não é transcendente, mas sim imanente. O virtual é um novo possível. “O vidente vê o possível e, com isso ascende a uma nova possibilidade de vida que pede para se realizar” (ZOURABICHVILI, 2000, p. 341). O vidente vê a possibilidade de viver de outra maneira, ele vê novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho etc. “O vidente pode ser o artista, o pensador, a singularidade qualquer, o anônimo, o pobre, o autista, o louco – em todo caso, aquele que, à sua maneira, chama por um modo de existência por vir” (PELBART, 2017, p. 414). No livro O que é a filosofia? (1991), no capítulo Percepto, Afecto e Conceito, Deleuze e Guattari pensam o artista como um vidente. “O artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. É um vidente, alguém que se torna” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 222). Os estados perceptivos são percepções e as passagens afetivas do vivido são as afecções. As percepções e as afecções são visões e sensações dos possíveis atuais, ou seja, as percepções e afecções são visões e sensações do já sabido, já conhecido, já pensado, já sentido, já imaginado, já dito, já visto. Os artistas visionários, os videntes, se despregam das afecções e percepções e “acedem a uma visão que compõe, através deles, perceptos desta vida, deste momento, fazendo estourar as percepções vividas” (DELEUZE; GUATTARI, 2010a, p. 222). Os artistas visionários, os videntes, estouram as percepções vividas para ver e perceber o não-vivido, o novo, o invisível. No livro Crítica e clínica (1993), no capítulo A honra e a glória: T.E. Lawrence, Deleuze diz que “Os escritores de maior beleza tem condições de percepção singulares que lhes permitem extrair ou talhar perceptos estéticos como verdadeiras visões” (DELEUZE, 1997, p. 132). Os artistas visionários possuem uma visão da realidade muito singular, por romperem com as percepções dos possíveis atuais, eles conseguem ver os perceptos dos possíveis virtuais. Para Deleuze e Guattari, “o artista é mostrador de afectos, inventor de afectos, criador de afectos, em relação com os perceptos ou as visões que nos dá” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 227). O artista cria um bloco de sensações, composto por afetos e perceptos. Os afetos não são afecções, e os perceptos não são percepções. “[...] o percepto ou novas maneiras de ver e ouvir, o afecto ou novas maneiras de sentir” (DELEUZE, 2017, p. 208) são afecções e percepções em devir. “A sensação composta, feita de perceptos e de afectos, desterritorializa o sistema da opinião que reunia as percepções e afecções dominantes num meio natural, histórico e social” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 252). A sensação composta de afetos e perceptos, provocada pelo encontro com a obra de arte, criada pelo artista visionário, desterritorializa as nossas afecções (maneiras possíveis de sentir o mundo) e desterritorializa as nossas percepções (maneiras possíveis de ver e perceber o mundo). A sensação desterritorializante faz as nossas afecções e percepções entrarem em devir, produzindo, assim, afetos e perceptos. O afeto é a afecção em devir, é uma nova maneira de sentir o mundo. O percepto é a percepção em devir, é uma nova maneira de ver e perceber o mundo. “Se o percepto se distingue de uma simples percepção é porque ele envolve um encontro, uma relação com o fora” (ZOURABICHVILI, 2000, p. 340). O vidente, o artista, se encontra com o fora, a parte virtual do real. O artista visionário arranca os perceptos do real e, com isso, produz uma desterritorialização da percepção, um devir da maneira de ver e perceber o mundo. Por isso, “da passagem da percepção ao ‘percepto’, e da afeição viviva ao ‘afecto’, que define a arte, como tal, na estética ‘visionária’ de Deleuze” (ALLIEZ, 2013, p. 213). O artista visionário, o vidente, “tem visões, entendemos aí, percepções em devir ou perceptos, que colocam em xeque as condições usuais da percepção” (ZOURABICHVILI, 2000, p. 340). A visão do vidente é o percepto, a percepção em devir, ela torna “sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, e que nos afetam, nos fazem devir” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, 235). A visão do vidente “faz do percepto uma ‘sensibilidade cósmica’” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, 234). No texto Re-presentação da cinefilosofia deleuziana: em direção a uma política do cinema? (2013), o filósofo Eric Alliez (1957-) pensa a visão do artista visionário como uma potência de contágio que contamina a obra e o espectador. Para Alliez, aqueles “cuja função é precisamente ver e nos fazer ver o que, naturalmente, nós não aperceberíamos. São os artistas” (ALLIEZ, 2013, p. 213). Na entrevista O abecedário (1988-1989), Deleuze pensa o filósofo como um vidente. Para ele, a criação “[...] é uma questão de visão, de vidências, aqui considera-se que a filosofia, a escrita, é uma questão... De maneira modesta, ver algo, que os outros não vêem” (DELEUZE, 1994, p. 9). Os artistas e os filósofos são “um 'vidente’, ou seja, um tipo de indivíduo capaz de compreender 'algo imperceptível em o que é visível'" (BOUANICHE, 2007, p. 304-5 - tradução nossa). Por isso, o filósofo David Lapoujade cogita afirmar que toda "[..] a filosofia de Deleuze gravita em torno de uma visão, ele que não para de invocar um ato de 'vidência'" (LAPOUJADE, 2015, p. 291). O filósofo cria conceitos e “Quando se pega um conceito filosófico, este conceito faz com que se veja as coisas. Os filósofos têm este lado de videntes” (DELEUZE, 1994, p. 53). O conceito produz novas maneiras de sentir e de perceber o mundo porque, segundo Deleuze "o conceito, creio eu, comporta duas outras dimensões, as do percepto e do afecto" (DELEUZE, 2017, p. 175). Por isso, Deleuze pensa os artistas e os filósofos como videntes por verem os possíveis virtuais do real, que são invisíveis para os outros, mas que se tornam visíveis para o vidente. Filósofos e literatos estão no mesmo ponto. Há coisas que se consegue ver e das quais não se pode mais voltar. Que coisas são estas? Varia muito de um autor a outro. Em geral, são perceptos no limite do suportável ou conceitos no limite do pensável. É isso. Entre a criação de um grande personagem e a criação de um conceito, eu vejo muitas ligações. É como se fosse a mesma empreitada (DELEUZE, 1994, p. 47).
Corpo sem órgãos e esquizoanálise em Deleuze e Guattari - Lucas DilacerdaCorpo sem órgãos e esquizoanálise em Deleuze e Guattari - Lucas Dilacerda, 2021
O objetivo deste artigo é apresentar os conceitos de corpo sem órgãos e esquizoanálise, de Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992), presentes no platô 6 Como criar para si um Corpo sem Órgãos?, do livro Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2 (1980). Para isso, apresentaremos a oposição entre o corpo sem órgãos e os estratos; pontuaremos os três tipos de estratos: o organismo do corpo, a significância da mente e a subjetivação da imanência; apresentaremos a diferença entre a desestratificação prudente, a desestratificação imprudente e a desestratificação reestratificante; pontuaremos os três tipos de corpo sem órgãos: o CsO pleno do revolucionário, o CsO vazio do suicida e o CsO canceroso do fascista; e, por fim, apresentaremos o problema dos três corpos e a proposta da esquizoanálise. Corpo sem órgãos Para Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos “é um exercício, uma experimentação [...] Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas” . O corpo sem órgãos não é algo a ser interpretado, mas sim experimentado, ele é uma prática, por isso ele é uma ética, ou seja, um modo de existência e um modo de vida, uma lógica desejante e uma maneira de desejar, ele é criado por meio de um conjunto de práticas, “você faz um” . Deleuze e Guattari afirmam ainda que “o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo” . O organismo é um poder sobre o corpo, ele é um controle que impõe um exercício dominante ao corpo. Por isso, Deleuze e Guattari afirmam que “O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO ”. Estratos O estrato é “um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil” . O estrato é um poder sobre o corpo sem órgãos, ele é um controle que impõe um exercício dominante à nossa vida e ao nosso desejo. Deleuze e Guattari pontuam que existem “três grandes estratos relacionados a nós, quer dizer, aqueles que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a subjetivação” . Organismo do corpo O primeiro tipo de estrato é o organismo. Para Deleuze e Guattari, o organismo é “O juízo de Deus, o sistema do juízo de Deus, o sistema teológico, é precisamente a operação Daquele que faz um organismo, uma organização de órgãos” . O juízo de Deus é o que Deleuze chama de “moral”, ou seja, um julgamento da existência a partir de valores transcendentes. O organismo tem como alvo o corpo, “o organismo cola no corpo” , ele é um poder sobre o corpo que lhe impõe uma maneira de agir, para assim, nos fixar à uma realidade dominante. “Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo — senão você será um depravado” . Nesse sentido, o corpo sem órgãos é uma desorganização do organismo, ele libera o corpo da prisão formada pelo estrato do organismo. Por isso, o corpo sem órgãos é um processo de criação de novas maneiras de agir. CsO pleno do revolucionário O primeiro tipo de corpo sem órgãos é o pleno, ele é criado quando o processo de desestratificação é prudente, ou seja, paciente e momentaneamente. Para Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos pleno é “pleno de alegria” . A alegria é um afeto que aumenta a potência de agir do corpo e a potência de pensar da mente, ela é a efetuação da nossa potência singular. “Acontece que existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo” . O corpo sem órgãos pleno se preenche de alegria, “posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades” . A alegria, ou seja, o afeto que aumenta a nossa potência de existir, é produzido quando o processo de desestratificação é feito com prudência, isto é, quando “Inventam-se autodestruições que não se confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões” . CsO vazio do suicida O segundo tipo de corpo sem órgãos é o vazio, ele é criado quando o processo de desestratificação é imprudente, ou seja, grosseiramente, exageradamente violento e demasiado brutal. Para Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos vazio é os que “tangenciam estes perpétuos perigos que esvaziam seu CsO em vez de preenchê-lo” . O corpo sem órgãos vazio não se preenche de nenhum afeto porque ele destrói completamente os estratos, ele cria um corpo sem órgãos absoluto que destrói completamente o organismo do corpo, a significância da mente e a subjetivação da imanência. O processo de desestratificação do corpo sem órgãos vazio é um movimento que vai em direção à morte, ele ultrapassa o limite entre a vida e a morte, e se suicida. Além disso, “Não basta então distinguir os CsO plenos sobre o plano de consistência e os CsO vazios sobre os destroços de estratos, por desestratificação exageradamente violento. É preciso considerar ainda os CsO cancerosos num estrato tornado proliferante” . CsO canceroso do fascista O terceiro tipo de corpo sem órgãos é o canceroso, ele é criado quando o processo de desestratificação é reestratificante. Para Deleuze e Guattari, o corpo sem órgãos canceroso é um “estrato que deveio proliferante” . O corpo sem órgãos canceroso é o corpo sem órgãos do estrato, pois “não basta opor abstratamente os estratos e o CsO. Porque encontra-se CsO já nos estratos” . O corpo sem órgãos canceroso é um tumor que se forma no estrato, ele desestratifica o estrato para criar uma nova estratificação. Por exemplo: “O CsO do dinheiro (inflação), mas também CsO do Estado, do exército, da fábrica, da cidade, do Partido etc” . Por isso, um câncer ploriferante é criado quando “Os estratos engendram seus CsO, totalitários e fascistas” . Para Deleuze e Guattari, o fascismo é um corpo sem órgãos canceroso, ele é uma ploriferação de estratos que impõe uma lógica desejante e uma maneira de desejar. Problema dos três corpos O corpo sem órgãos pleno do revolucionário é um desejo de alegria. O corpo sem órgãos vazio do suicida é um desejo de morte. O corpo sem órgãos canceroso do fascista é um desejo de estrato. Se o corpo sem órgãos é desejo, então como diferenciar o desejo revolucionário, do desejo suicida e do desejo fascista? Como distinguir os três tipos de desejo? Esse problema é o que Deleuze e Guattari chamam de “Problema dos três corpos. [...] Como criar para si CsO sem que seja o CsO canceroso de um fascista em nós, ou o CsO vazio de um drogado, de um paranóico ou de um hipocondríaco? Como distinguir os três corpos?” . Nesse processo de distinção dos três tipos de desejo, qual critério seria válido para essa diferenciação? Esquizoanálise Por isso, Deleuze e Guattari criam a esquizoanálise como uma análise política do desejo, ela é uma clínica, ética, estética e política de avaliação e intervenção dos movimentos oscilatórios do desejo. “Por isto o problema material de uma esquizoanálise é o de saber se nós possuímos os meios de realizar a seleção, de separar o CsO de seus duplos: corpos vítreos vazios, corpos cancerosos, totalitários e fascistas” . A esquizoanálise põe o desejo à prova e avalia o seu tipo a partir do único critério válido para essa diferenciação, que é a vida. “A prova do desejo: não denunciar os falsos desejos, mas, no desejo, distinguir o que remete à proliferação de estratos, ou bem à desestratificação demasiada violenta, e o que remete à construção do plano de consistência (vigiar inclusive em nós mesmos o fascista, e também o suicida e o demente.)” . O critério para a distinção dos três tipos de desejo não é a verdade, não se trata de distinguir os desejos falsos dos desejos verdadeiros. O critério para a distinção dos três tipos de desejo é a vida, se trata de distinguir os desejos que liberam a vida da prisão dos estratos, dos desejos que conduzem a morte ou dos desejos que se fascinam pelo poder dos estratos. Por isso, uma das tarefas da esquizoanálise é a desestratificação prudente, é nos precaver da experimentação suicida, é nos curar desse câncer proliferante que é o fascismo, é liberar a vida lá onde está prisioneira dos estratos. A esquizoanálise é uma desorganização prudente do organismo do corpo, é uma dessignificação prudente da significância da mente, é uma dessubjetivação prudente do sujeito. “Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte” .
A arte e a força da fragilidade - Lucas Dilacerda2024
O DENTRO É O FORA: A ARTE E A FORÇA DA FRAGILIDADE Lucas Dilacerda 1 INTRODUÇÃO Neoconcretismo filosófico Fonte: Lygia Clarck (1963). Na obra O dentro é o fora (1963), a artista Lygia Clark propõe uma reflexão sobre a inseparabilidade do “dentro” e do “fora, rompendo as categorias binárias tradicionais – tais como esquerda e direita, cima e baixo, antes e depois, início e fim – para enfatizar a interconexão e a interpenetração de diversos aspectos da vida. Essa obra é um exemplo marcante do movimento neoconcreto no Brasil. Clark focava na experiência do espectador, levando a um engajamento sensorial direto com suas obras. A prática artística de Lygia Clark busca romper com a relação passiva entre a obra de arte e o espectador, estimulando uma participação ativa e uma reflexão sobre a natureza da percepção e da existência. A obra questiona e redefine o conceito de espaço, promovendo uma interpretação mais holística e integrada da vida e suas experiências. Caminhando Fonte: Lygia Clarck (1963). Na obra Caminhando (1963), Lygia Clark utilizou o pensamento da Fita de Möbius para explorar temas de continuidade e a relação entre o dentro e o fora em sua obra. A Fita de Möbius, em matemática, é uma superfície com apenas um lado e uma única borda, desafiando a noção intuitiva de dentro e fora. Na obra de Clark, a Fita de Möbius serve como conceito de suas explorações sobre o espaço e a experiência sensorial. Ela buscava transcender as fronteiras tradicionais que delimitam o "dentro" e o "fora", refletindo sobre a interconectividade e a fluidez das percepções humanas. Sobre a obra Caminhando (1963), Suely Rolnik comenta: Caminhando data de 1963. Sua criação é uma resposta singular a um dos desafios que impulsionaram o movimento das práticas artísticas nos anos 1960 até 1970: ativar a potência clínico-política da arte, sua potência micropolítica, então debilitada por sua neutralização no sistema da arte. O impulso que deu origem a esse movimento resultou de um longo processo desencadeado pelas vanguardas do início do século XX, cujas invenções foram se capilarizando pela trama social, interrompendo-se apenas durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Finda a Segunda Guerra, tal capilarização retomou seu curso ainda mais radical e densamente até gerar o amplo movimento social que sacudiu o planeta nos anos 1960 até meados dos anos 1970, marcado pela reapropriação da pulsão criadora em práticas coletivas na vida cotidiana, muito além do campo restrito da arte. A origem dessa proposição de Clark foi um estudo da artista para uma obra que posteriormente – e não por acaso – ela intitulou O antes é o depois. Inaugurava-se com esse estudo um novo rumo de sua conhecida série Bichos, voltado para a exploração da fita de Moebius: uma superfície topológica na qual o extremo de um dos lados continua no avesso do outro, o que os torna indiscerníveis e a superfície, uniface . Suely Rolnik colaborou extensivamente com a memória de Lygia Clark, documentando seus trabalhos e conduzindo entrevistas para exposições e publicações. O trabalho de Lygia Clark muitas vezes explorava a relação entre o corpo, o espaço e a subjetividade, alinhando-se a conceitos psicanalíticos. Experiências com "objetos relacionais" por parte de Clark foram um meio de criar novas experiências sensoriais que poderiam ter um papel terapêutico. Embora não haja menção direta da Fita de Möbius relacionada a Rolnik ou Clark, as teorias psicanalíticas frequentemente utilizam metáforas espaciais e topológicas para descrever o funcionamento da subjetividade e do inconsciente. A Fita de Möbius, sendo uma figura topológica, pode servir como um conceito para a natureza contínua e transformadora da subjetividade, tal como pensada por Michel Foucault. No capítulo As dobras ou o lado de dentro do pensamento, do livro Foucault (1985), Deleuze afirma que “Foucault não é mais um mero arquivista à Gogol, um cartógrafo à Tchekhov, mas um topologista à maneira de Biély no grande romance Petersbourg, que faz da dobra cortical uma conversão do lado de fora e do de dentro” ., p. 127. Caminhando Fonte: Lygia Clarck (1963). No texto A hora da micropolítica (2015), Rolnik elabora conceitualmente dois tipos de experiência: a do “sujeito” e a do “fora-do-sujeito”. Dois tipos de experiência que fazemos no mundo. A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo segundo em seus contornos atuais – uma apreensão estruturada segundo a cartografia cultural vigente. Em outras palavras, quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido. Este modo de congnição é indispensável para a existência em sociedade, porém essa é apenas uma entre as múltiplas experiências outras experiências que a subjetividade faz do mundo e que operam simultaneamente. Trata-se da experiência do que chamamos de “sujeito”. Em nossa tradição ocidental, confunde-se “subjetividade” com “sujeito”, porque nesta política de subjetivação, é apenas esta capacidade a que que tende a estar ativada. No entanto, a experiência que a subjetividade faz do mundo é potencialmente muito mais ampla, múltipla e complexa. Um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno é a que designo como “fora-do-sujeito”, é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento (o que Gilles Deleuze e Félix Guattari denominaram, respectivamente, “perceptos” e “afectos”). Somos tomados por um estado que não tem nem imagem, nem palavra, nem gesto que lhe correspondam e que, no entanto, é real e apreensível por este modo de cognição que denomino “saber-do-corpo”. Aquí já não se trata da experiência de um indivíduo, tampouco existe a distinção entre sujeito e objeto, pois o mundo “vive” em nosso corpo sob o modo de “afectos” e “perceptos” . No livro Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada (2018), Rolnik relaciona a obra de Lygia Clarck com a experiência do “fora-do-sujeito” , aproximando-a dos conceitos de “percepto” e “afeto” de Deleuze e Guattari: “Introduzem-se outras maneiras de ver e de sentir, que podemos associar à experiência que Lygia Clark teve ao recortar sua fita de Moebius e que a levou a criar Caminhando. A essas outras maneiras, Gilles Deleuze e Félix Guattari deram o nome, respectivamente, de ‘percepto’ e ‘afeto’” . ESQUIZOFRENIA: O ENCONTRO COM O FORA Para Deleuze e Guattari, a esquizofrenia é o processo de descodificação dos fluxos, ou seja, é o processo de liberação dos fluxos codificados pelo socius. Assim, logo nas primeiras páginas d’O anti-Édipo (1972), Deleuze e Guattari descrevem o passeio do esquizofrênico ao ar livre em contraposição à imobilidade do neurótico no divã. O passeio do esquizofrênico: eis um modelo melhor do que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o fora. Por exemplo, o passeio de Lenz reconstituído por Büchner. É diferente dos momentos em que Lenz se encontra na casa do seu bom pastor, que o força a se ajustar socialmente em relação ao Deus da religião, em relação ao pai, à mãe. No seu passeio, ao contrário, ele está nas montanhas, sob a neve, com outros deuses ou sem deus algum, sem família, sem pai nem mãe, com a natureza. [...] Tudo compõe máquina. Máquinas celestes, as estrelas ou o arco-íris, máquinas alpinas que se acoplam com as do seu corpo. Ruído ininterrupto de máquinas. Ele “achava que deveria ser uma sensação de infinita felicidade ser tocado assim pela vida primitiva de toda a espécie, ter sensibilidade para as rochas, os metais, para a água e as plantas, captar em si mesmo, como num sonho, toda criatura da natureza, da mesma maneira como as flores absorvem o ar com o crescer e o minguar da lua”. Ser máquina clorofílica ou de fotossíntese ou, pelo menos, enlear seu corpo como peça em tais máquinas. Lenz se colocou aquém da distinção homem-natureza, aquém de todas as marcações que tal distinção condiciona. Ele não vive a natureza como natureza, mas como processo de produção. Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro e acopla as máquinas. Há em toda parte máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, nada mais querem dizer . Na descrição do delírio do esquizofrênico, Deleuze e Guattari pontuam a sua recusa ao “Édipo”, ao “pai”, à “mãe”, ao “eu”, à “família”, à “sociedade” e ao “Deus da religião”; e ao mesmo tempo o seu livre desejo cósmico e pulsante de conexão com a natureza, com as pedras, as rochas, as montanhas, os metais, a neve, a água, as plantas, as flores, as estrelas, o arco-íris, a lua e o sol. O passeio do esquizofrênico ao ar livre é o encontro com o fora, ou seja, é a criação de uma sensibilidade que se constrói em devir com a natureza, são máquinas se acoplando com outras máquinas, abandonando assim os dualismos sujeito-objeto, eu-outro, exterior-interior, homem-natureza. DESERTO: O FORA DO MUNDO Na filosofia de Deleuze e Guattari, a imagem do Mundo Implicado é o deserto, isto é, a paisagem não-humana da Natureza. O deserto é a Terra que realizou o processo de subtração do homem e, ao mesmo tempo, é a paisagem anterior ao homem, na ausência do homem, antes do seu processo humanista, civilizatório e colonizador. Nesse sentido, o deserto é o Mundo desestratificado, despovoado, desertificado, ele é o Mundo sem sujeito e sem objeto, um Mundo que não pressupõe nada, que pressupõe só a si mesmo, é uma Terra solitária, entretanto, é uma solidão povoada, preenchida de multiplicidades e intensidades livres. O deserto é o Mundo desterritorializado. E d...