2020, Ciência e Cultura
A ciência e a arte são, entre outras coisas, tentati-vas do homem de entender, descrever e explicar o mundo que o cerca. É interessante notar que esses campos do conhecimento humano, que contemporaneamente parecem tão distantes um do outro, evoluíram juntos por muitos e muitos séculos. Duran-te o Renascimento, por exemplo, entender igualmente sobre arte, arquitetura, engenharia e ciência era esperado de todas as pessoas reconhecidas e admiradas por seu gênio. O homem renascentista, por definição, era um humanista, um polímata universal aos moldes de Brunelleschi, Leonardo ou Michelangelo. Entretanto, foi no Renascimento que houve o início da sepa-ração dos ofícios produtivos, das ciências e das artes. Pelo lado da arte, isso talvez se devesse à ascensão social almejada pelos artífices que buscavam a valorização dos objetos da arte como demonstração de poder e prestígio junto às classes ricas e poderosas; e pelo lado da ciência, ao abandono gradual do teocentrismo e à valorização do senso crítico e da observação dos fenômenos naturais. A ciência moderna, como a conhecemos a hoje, começou a ser definida a partir do século XVI, com Kepler e Copérnico, e foi im-pulsionada no século XVII por Galileu Galilei, Francis Bacon, Isaac Newton, entre outras mentes brilhantes [1]. Por outro lado, foi no século VXIII que a estética se consolidou como o elemento-chave para a arte, diferenciando-a definitivamente de suas funções utili-tárias [2]. Foi em torno dessa mesma época que o cientificismo e o iluminismo começaram a insistir na tese de que a arte não era capaz de descrever a realidade com exatidão; e, portanto, não era capaz de produzir conhecimento verdadeiro. Nas primeiras décadas do século XIX, a ciência já estava estabe-lecida como uma área de estudo independente, e o método já havia sido incorporado às práticas científicas em todo o mundo. Um exemplo disso foi que, em 1817, a Encyclopaedia Metropolitana, concorrente da já estabelecida e influente Encyclopaedia Britanni-ca, é publicada com uma introdução escrita pelo poeta e filósofo Samuel Taylor Coleridge, com um texto que é como um tratado sobre o método, com uma abordagem que enfatizava a importância das relações entre as ideias. Dizia Coleridge: "O método, portanto, torna-se natural para a mente que está acostumada a contemplar não apenas as coisas por si só, mas também e principalmente a relação das coisas, seja a relação entre si, seja com o observador, ou com o estado e apreensão dos ouvintes. Enumerar e analisar essas relações, com as condições sob as quais são descobertas, é ensinar a ciência do método" [3]. O que se viu, a partir de então, foi uma separação ainda mais radical entre a ciência e as artes-consequência, talvez, da busca do rigor do método e da tendência à especialização das ciências, por um lado; e, por outro, as artes sendo cada vez mais caracterizadas e iden-tificadas como um campo de expressão intensamente pessoal, carente de métodos de verificação, verdadeiro reflexo dos sentimentos e das ideias dos artistas e incapaz de produzir conhecimento verdadeiro. A concepção de que a ciência tratava de observação e interpreta-ção já estava consolidada, mas, no início do século XX, era bastante evidente para alguns cientistas que eles deveriam se ocupar com algo além dos fatos a serem observados e interpretados, e das descobertas a serem demonstradas e sistematicamente classificadas e unificadas sob leis gerais. Nessa época, começou a haver uma maior aceitação sobre o fato de que não seria possível estabelecer um método único, definitivo e objetivo para todas as ciências, e Einstein, Heisenberg, Planck, Bohr, entre outros cientistas, tiveram papel ativo na revira-volta que tornaria evidente que a imaginação exercia papel fundamental nas descobertas e no conhecimento científico. A ciência e a arte são duas facetas da experiência humana que, no último século, foram tratadas a partir de suas diferenças irreconcili-áveis e não a partir de sua origem comum ou de suas convergências. Em uma época em que vislumbramos promissores avanços nas in-tegrações entre o humano e o não humano, através das tecnologias digitais e biológicas, a pergunta que devemos continuar a nos fazer é: que papel a imaginação exerce na produção de conhecimento, con-siderando que, por um lado, a imaginação científica estaria sempre sujeita à razão, à consistência metodológica e ao rigor da verificação, e, por outro, a imaginação artística, aparentemente, não tem limites? As respostas não são fáceis, mas, contemporaneamente, a neurociên-cia, as ciências cognitivas, a filosofia da mente e das tecnologias estão voltando novamente a atenção para essa questão. Em um trecho inspirado do ensaio Ciência, razão e paixão (1994) [4], Ilya Prigogine nos lembra que a ciência é um diálogo entre o homem e a natureza-nós construímos, ao longo dos séculos, uma ideia de natureza da qual somos parte. A certa altura, oportu-namente, ele reconta o relato de Heisenberg sobre uma observação de Bohr durante uma visita que fizeram, certa feita, ao Castelo de Kronberg, na Dinamarca: "não é estranho como este castelo pareça completamente diferente quando pensamos nele como o lugar onde morou Hamlet? Como cientistas, acreditamos que um castelo seja feito de pedras, assim como admiramos a maneira como o arquiteto as arrumou. As paredes, o teto de bronze azinhavrado pelo tempo, as vigas de igreja, o castelo é feito de tudo isso. Nada deveria mudar somente porque Hamlet morou aqui, mas isso muda tudo. De re-pente, paredes e baluartes passam a falar uma língua completamente diferente. Mesmo assim, a única coisa que sabemos com certeza so-bre Hamlet é que seu nome aparece em uma crônica do século XIII. Mas todos sabemos as perguntas que Shakespeare se fez, assim como as profundezas humanas que elas revelam; ele também precisava de um lugar no mundo, aqui em Kronberg..." [4, p. 86].