2019, Performance e Contexto
Tendo caído em desuso na segunda metade do século XVIII, a flauta de bisel não sofreu as modificações tecnológicas a que foram submetidos os outros instrumentos de sopro ao longo do século XIX. O revivalismo dos instrumentos antigos a partir dos finais desse século, levou Arnold Dolmetsch a construir cópias de flautas de bisel barrocas e o instrumento adquiriu uma enorme popularidade ao longo do século XX. Até cerca de 1960, compôs-se um acervo de obras para este instrumento, geralmente num idioma neoclássico. Na década de 60, Frans Brüggen desenvolveu uma carreira internacional de grande sucesso. Para incluir nos seus recitais a solo, aquele flautista holandês encomendou obras a compositores contemporâneos, que num estilo mais vanguardista procuraram explorar inesperados recursos do instrumento, ultrapassando as fronteiras daquilo que aparentava ser o seu carácter delicado, contribuindo decisivamente para a ampliação das suas possibilidades técnicas, dotando novas gerações de instrumentistas de ferramentas utilizáveis também no repertório tradicional. Executar obras do século XX num instrumento de tipologia barroca, cuja construção não acompanhou a evolução da linguagem musical, se por um lado é um evidente mas assumido anacronismo, acaba por ser a continuação lógica dum processo de redescoberta e reinvenção das capacidades dum instrumento obsoleto. Escolhi para este vídeo, duas obras dedicadas a Frans Brüggen, Gesti (1966) de Luciano Berio e Fragmentos (1968) de Makoto Shinohara, e uma peça de 1994, Ausser Atem de Moritz Eggert. As duas primeiras são tocadas em flauta tenor, concretamente duas voice flutes em ré a 415 Hz. Em Ausser Atem para um flautista tocando três flautas diferentes, soprano em dó e altos em Fá e Sol, usei flautas a 440 Hz. Neste artigo, pretendo refletir sobre algumas questões e desafios levantados pela abordagem destas peças. A sua aparente ou real dificuldade, se por um lado tende a colocar o flautista num estado de tensão que em nada contribui para o sucesso da performance, não deixa de ser parte integrante das obras e do espetáculo. A tensão dramática que a sua execução deve suscitar é, infelizmente, muitas vezes sentida e traduzida pelo executante em tensão muscular. Quem deverá suar é o ouvinte e não o intérprete que deve praticar para tornar o impossível possível, o possível fácil, e o fácil elegante. 1 Por outro lado, estas peças levaram-me a desconstruir a técnica laboriosamente adquirida ao longo de anos, permitindo-me rever e readquirir uma técnica baseada na lei do menor esforço e numa consciência propriocetiva mais apurada. Para isso, a Técnica Alexander foi uma ferramenta essencial, pois através duma consciencialização de hábitos automatizados possibilita que eles sejam substituídos por outros mais eficientes. É precisamente na desautomatização de coordenações praticadas até mergulharem no subconsciente que se baseia a peça de Berio, que exige uma separação deliberada dos movimentos dos dedos e da língua, contrariando anos de prática. Da mesma forma, Ausser Atem obriga o intérprete a dissociar o controlo das duas mãos para tocar duas flautas simultaneamente enquanto as cordas vocais são postas em vibração.