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Nação e cidade no «teatro de grupo» de São Paulo

Introdução O teatro de grupo é uma tradição das grandes cidades da América Latina, que vem desde os anos 60 [Flávio Aguiar, «Teatro», Raymond Williams, Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade, São Paulo: Boitempo, 2007; Emir Sader, Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile (coords.), Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe, São Paulo: Boitempo, 2006]. Nesta comunicação pretendo falar de alguns grupos de São Paulo fundados nos anos noventa do século vinte (Teatro da Vertigem, Companhia do Latão, Companhia São Jorge de Variedades, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos), cujos espectáculos e reflexão tenho vindo a acompanhar desde 2004, no decorrer de várias estadias, de alguns meses por ano, no Brasil, e em particular um deles, o Folias, sobre o qual escrevi uma monografia publicada em 2008. Um dos pressupostos básicos desta comunicação é que o teatro contribui para a imaginação da nação brasileira por parte duma comunidade (de artistas, espectadores e público em geral) identificável no tempo e no espaço, tal como o fazem a imprensa e a literatura, os media e a ficção audiovisual, seja pelo âmbito desses meios seja pelos conteúdos que reproduzem [Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, London, New York, 1991]. Decorre daí que a estrutura de cada espectáculo reproduz uma visão de mundo, e reflecte o real de acordo com o olhar dos criadores, num mundo de panoramas alternativos sobre o mesmo real, uns capilares e minoritários, às vezes meramente domésticos e amadores, como o teatro de grupo, outros de escala mundial, para as massas, altamente profissionalizados, comerciais. Essas visões de mundo socorrem-se de modelos dramatúrgicos variados. No caso do teatro de grupo, o modelo da cena de rua, de Brecht, transformado para dar conta das contradições da república brasileira, opõe-se aos modelos de ficção televisiva e cinematográfica, bem como aos modelos de cena do teatro comercial (as mais das vezes associados à indústria audiovisual). [Existe uma continuidade entre o mercado de trabalho dos criadores de teatro de São Paulo e o mercado de trabalho audiovisual, no entanto.] Podemos dizer que a cena de rua de São Paulo se opõe aos modelos dominantes tal como a cena de rua de Brecht se opunha à máquina de propaganda (e sua espectacularidade) e à estética oficial do regime nazi [Helga Finter, «A teatralidade e o teatro: espetáculo do real ou realidade do espetáculo? Notas sobre a teatralidade e o teatro recente na Alemanha», Camarim, originalmente publicado em Teatro Al Sur, nº 25, Out. 2003; Peter Pál Pelbart, «Mutações contemporâneas», Estéticas da Biopolítica, www.revistacinetica.com.br]. A comparação entre o regime nazi e o regime democrático brasileiro pode chocar, mas peço a vossa complacência para a força de expressão. A pertinência e relevância da discussão decorre do diagnóstico de falência do projecto nacional -que estará em desmanche [Sérgio de Carvalho, «A politização do movimento teatral em São Paulo», Camarim, 43, 1.º sem. 2009, São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro; Paulo Arantes, «Paulo Arantes: um pensador na cena paulistana», entrevista a Beth Néspoli, O Estado de S. Paulo -Caderno 2, 16 Jul. 2007] -sem que se vislumbre uma alternativa de organização social. Finalmente, é também um pressuposto que a comunidade imaginária nacional (ainda que complementar, transversal, concorrente e/ou articulada com comunidades de identidade étnica, continental, regional, provincial, local, urbana, bairrista, etc.; discussão que não tem lugar aqui) assenta numa série de lugares de memória que constitui património identitário, bem como numa série de práticas mais ou menos emblematizadas e objectos mais ou