Academia.eduAcademia.edu

O ensino de farmácia em Lisboa (1834­-1934)

2013, In S. C. Matos & J. Ramos do Ó, A Universidade de Lisboa nos Séculos XIX e XX (pp. 729–777), Lisboa, Tinta da China

As origens do ensino superior farmacêutico na cidade de Lisboa estão intimamente ligadas às transformações sociais e políticas observadas em Portugal desde as invasões francesas até ao Vintismo e à vitória dos liberais na guerra civil de 1828-1834. Uma experiência pioneira terá sido mesmo abortada pela primeira invasão e consequente fuga da família real. Em 1801 foi decidida a criação de uma aula de farmácia, a ter lugar no Laboratório Químico da Casa da Moeda . Em 1804 esta cadeira foi anexada à Faculdade de Filosoa da Universidade de Coimbra, sendo nomeado lente o médico e farmacêutico Manuel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1828), que já dava aulas na Botica da Casa Pia, e fora autor, tradutor e editor de várias obras usadas para a aprendizagem da química e farmácia em Portugal. Contudo, apesar de estar previsto que as aulas começassem logo em 1804/1805, este curso não terá chegado sequer a ser iniciado. Henriques de Paiva, caído em desgraça depois das invasões francesas devido às suas simpatias liberais, caria posteriormente ligado à Escola Médica da Bahia. Só em 1823 se iniciou no mesmo Laboratório da Casa da Moeda o Curso de Física e Química de Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, de que resultou o seu Curso Elementar de Física e Química (1824), e ao qual assistiu um grande número de farmacêuticos. O ensino e o associativismo dos farmacêuticos vão nascer de um movimento de oposição ao físico-mor, o ocial régio que sempre centralizou atribuições como o controlo da admissão na prossão, a marcação de preços e a realização das visitas de inspecção. Entre as aspirações criadas pelas ideias liberais entre os farmacêuticos, ganhou força a da libertação da submissão àquele que era visto simultaneamente como um representante do poder absoluto e da prossão médica. Em Julho de 1834, cerca de centena e meia de farmacêuticos de Lisboa, liderados por António Cardoso Pereira de Sena Correia, subscreveram uma petição pedindo, entre outas coisas, que todas as visitas do físico-mor fossem suspensas, que estas atribuições fossem transferidas para inspectores anualmente eleitos de entre a classe farmacêutica e que os preços dos medicamentos passassem a ser livres. Os subscritores declaravam constituir uma classe das que mais traba-1 1 Introdução 2 lharam e contribuíram para a queda do Usurpador, pelo muito que interessava em libertar-se da opressão que os escravizava [37]. O relatório e parecer sobre este requerimento, da comissão de legislação da Câmara dos Deputados, apresentado a 4 de Outubro, deu parcialmente razão aos requerentes, que reuniram em Assembleia Geral na botica do Hospital de S. José e elegeram uma comissão para elaborar um Plano de Reforma. A 23 de Fevereiro de 1835 foram suspensas as atribuições do físico-mor e a Comissão Farmacêutica iniciou o trabalho de organização de uma Sociedade. A cerimónia de instalação da Sociedade Farmacêutica de Lisboa teve lugar, novamente na botica do Hospital de S. José, no signicativo dia 24 de Julho de 1835. Em nais de Agosto, o número de sócios fundadores chegou aos 114. Também simbólica foi a adopção pela Sociedade do emblema com a serpente enrolada numa palmeira, que era à época o da Société Libre des Pharmaciens de Paris, criada nesta cidade depois da Revolução. No campo cientíco, a Sociedade Farmacêutica tinha como ns o progresso da Farmácia em toda a sua extensão e Tudo que, nos limites da Ciência, for concernente à Saúde Pública. Para levar a cabo esses objectivos, os estatutos de 1838 determinaram que deviam existir seis comissões permanentes, Saúde Pública, Farmácia, Química, Física, História Natural e Direito Farmacêutico. Os estatutos previam a constituição de uma biblioteca, um gabinete de história natural, um horto botânico, um laboratório químico e um gabinete de instrumentos e máquinas. A Sociedade manteve ao longo dos anos uma tradição de intensa actividade laboratorial. Entre os trabalhos desenvolvidos pela Sociedade, no laboratório químico da Margueira e em laboratórios próprios, contam-se as análises de águas minerais, de drogas e medicamentos, parte de um amplo espectro de análises e estudos no âmbito da farmácia, da bromatologia, da higiene, da toxicologia e da química aplicada às artes e à agricultura, que se encontram no Jornal da Sociedade Farmacêutica de Lisboa (1836), depois intitulado Jornal da Sociedade Farmacêutica Lusitana, de 1839 a 1933. A Sociedade Farmacêutica inuenciou de forma directa ou indirecta, principalmente durante as primeiras décadas de existência, as reformas e a produção legislativa de importância para o sector farmacêutico em Portugal. A sua campanha pela reforma do ensino produziu frutos, com a criação em 1836 dos cursos farmacêuticos anexos à Faculdade de Medicina de Coimbra e às Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto. O presente capítulo visa traçar um panorama da evolução do ensino farmacêutico em Lisboa durante os cerca de cem anos que medeiam entre estes desenvolvimentos e o nal da experiência do primeiro período da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Dedicamos particular atenção ao estudo do período até 1911, por as obras existentes sobre a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, nomeadamente os textos de Eduardo Mota[56] e Augusto Silva Carvalho[31], tenderem a ignorar a vertente do ensino farmacêutico e porque para o período posterior à refundação da Universidade já se dispunha do texto, informativo embora com um enfoque presentista e algo enviesado, Meio