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NIETZSCHE, Friedrich - A Vontade de poder, apoiados no referido plano, subdividindo-o em capítulos segundo critérios próprios, ainda que com acenos nos escritos, tomando a divisão proposta no plano escolhido em quatro livros e servindo-se do acervo póstumo existente, foram enchendo esse esqueleto, preenchendo, encorpando e engordando esses livros, no caso da edição de , com textos que, de acordo com o assunto, o teor ou a natureza deles, se mostravam oportunos para se enquadrar nos títulos-temas dos referidos livros do plano que estava sendo seguido. Não se sabe, evidentemente, se Nietzsche levaria a cabo a realização de uma tal obra planejada, qual seria o plano a seguir, se algum existente ou outro que viesse a ser concebido. Evidentemente, caso o fizesse, a disposição, a organização dos textos, assim como os próprios textos jamais seriam esta ou estes. Daí tratar-se, sim, de textos de Nietzsche, mas não de uma obra de Nietzsche. É preciso que se enfatize: os textos são autênticos. Todos são da cunhagem, da lavra de Nietzsche. Não foram, como já se disse e se insinuou, distorcidos ou adulterados pelos organizadores. Não. Seu ordenamento e sua publicação, porém, não seguiram rigorosos critérios crítico-filológicos. Confrontados com a edição crítica, hoje disponível, se vê tratar-se de textos genuínos, ainda que, aqui ou ali, com pequenos erros e pequenos cortes, lacunas, não por alguma pretensa má-fé, mas por deslizes naturais de uma publicação que não segue normas crítico-filológicas próprias da acribologia científica. Isso é decisivo: os textos são autênticos e constituem uma rica coletânea de fragmentos da última década produtiva de Nietzsche. Uma tal coletânea, em versão integral, com os . fragmentos, era desconhecida por nós, no Brasil, em tradução para nossa língua. Hoje, na edição crítica, inicialmente organizada por G. Colli e M. Montinari, depois seguida por W. Müller-Lauter e K. Pestalozzi, em Walter de Gruyter, Berlim, os textos estão diluídos no corpo da edição, de acordo com a ordem cronológica de suas respectivas redações. Que não se leiam, pois, estes textos com o espírito e o intuito de aí descobrir alguma sistematização da obra e do pensamento de Nietzsche. Os textos não seguem, não obedecem a nenhum plano, ainda que em rigorosa unidade e consonância com o pensamento maduro de Nietzsche. É preciso, portanto, que vejamos tal obra como uma rica antologia de textos nietzschianos tardios. Diria Nietzsche, dardos, flechas lançadas contra nós, a nós... Que dardos! Que flechas! . Vida, desde O nascimento da tragédia, sempre ocupou o centro do pensamento de Nietzsche. Vida, que em princípio não se refere a nenhum fenô- meno da ordem do biológico, fala do que o grego, sob a designação de psyché, de modo amplo e geral, caracterizou como movimento que, desde si mesmo, move a si mesmo. Assim também se assinala começo [arché ], que não começa e não pode começar. Esta visão ou experiência caracteriza igualmente círculo, isto é, inserção. Inserção como estrutura de começo, de arché, de vida. Portanto, nada fora-além ou aquém. Princípio de si mesmo; princípio que não principia, começo que não começa. Então, irrupção súbita, gratuita, e isso, de novo, perfaz círculo, circularidade ou inserção. Pois bem, essa estruturação ou fenômeno, que fala da experiência grega de arché, Nietzsche, mais ou menos a partir do Zaratustra, passa a denominar vontade de poder-Wille zur Macht. Esta noção, para Nietzsche, dá maior clareza, maior inteligibilidade à vida. Por que vontade? Por que poder? O que propriamente quer dizer isso? Vontade, que não é nenhum poder da subjetividade humana, nada de decisão ou arbítrio de alguma faculdade subjetiva do homem, se refere, antes, à transcendência que caracteriza a inserção, que perfaz o círculo que é vida, que é arché. Assim, vontade fala da espontaneidade do irromper da vida, de seu livre movimento de autoexposição ou aparição. Espontaneamente, gratuitamente, vida é acontecimento de vir à luz, fazer-se visível e, assim, crescer, isto é, agravar-se, intensificar-se. E isso mesmo é poder, à medida que é realização e, então, assim, impõe-se, impera, vige e vale. É força-esta força-concretizada. Vida é vontade de poder, quer dizer, desde nada, a partir de nada, movimento livre (gratuito, sem porquê, sem causa) de, para [zur] aparição e, então, assim, imposição, vigência-poder. Vida, enquanto e como vontade de poder, é a fala do extraordinário, do milagre que o grego experimentou como o elementar de ser-aparecer. Sim, isto, a vida, é o elementar ou o e l e m e n t o-o medium. A tendência, ou melhor, o espontâneo desse aparecer, portanto o próprio de vida e de vontade, é crescer. Não crescer no sentido somativo, aglutinante, avolumando-se e agigantando-se (engordando!), mas crescer como se agravar, se intensificar e, assim, de algum modo, ganhar clareza, nitidez e lucidez na sua própria história [Geschichte], isto é, no seu próprio destino ou envio histórico, pois é isso que, verdadeiramente e em última instância, está em questão. Então, nesse sentido, é envio, destino e crescimento, isto é, intensificação de poder. Esse crescimento, essa clareza ou evidência de destino ou de envio histórico pode e até precisa ser também o crescimento e a intensificação do obscuro, da sombra, do insondável. Portanto, nenhuma veleidade faustiana ou nada de vontade cartesiana de representação clara e distinta. Esse crescimento, essa intensificação própria de vida, de vida ascendente, se caracteriza por um fazer-se ou tornar-se cada vez mais econômico, mais simples, e isso se mostra exemplarmente na arte, na criação artística, enfim, na obra de arte. . A década de , na vida de Nietzsche, constitui o período de maior lucidez, de maior intensidade de seu pensamento-de maior poder. É quando seu pensamento está mais afinado com a gravidade de sua tarefa e mais afiado para sua consecução. Essa lucidez coincide com a cunhagem do pensamento vida como vontade de poder. À luz desse conceito, dessa "psicologia e morfologia da vida", como ele mesmo denomina, Nietzsche, ou melhor, esse conceito vai medir-se, isto é, confrontar-se, discutir com a tradição filosófica do Ocidente. Em questão está a própria filosofia, a metafísica, o saber radical, de princípio e de fundamento. Enfim, em questão está a ciência, die Wissenschaft, na designação quase pomposa do idealismo alemão, ou seja, o saber (metafísica, ontologia), de modo geral. Este saber, em geral, aparece encarnado em seus grandes domínios: o conhecimento, a lógica, a moral, a teologia (cristianismo), a política, a arte. Em questão estarão conceitos orientadores como substância,
NIETZSCHE, F. Vontade de potênciaEnsaio de uma transmutação de todos os valores Esboço de um prólogo As grandes coisas exigem silêncio, ou que delas falemos com grandeza: com grandeza significa: com cinismo e inocência 1. Narro aqui a história dos dois séculos que virão. Descrevo o que virá, o que não mais deixará de vir: a ascensão do niilismo. Desde já esta página da história pode ser contada: porque, no caso presente, é a própria necessidade que a produzirá. O futuro fala desde já pela voz de cem signos, a fatalidade anuncia-se em toda a parte; para entender esta música do futuro todos os ouvidos já estão atentos. A civilização européia agita-se desde muito sob uma pressão que vai até a tortura, uma angústia que cresce em cada década, como se quisesse provocar uma catástrofe: inquieta, violenta, arrebatada, semelhante a um rio que quer alcançar o término de seu curso, que não reflete mais, que teme até refletir. Quem toma qui a palavra nada mais fez, até o presente, que meditar e recolher-se como filósofo e como solitário por instinto, que encontrou proveito fora da vida, apartado dos homens, na paciência, na contemplação, no retiro; qual um espírito audaz e temerário que várias vezes se descaminhou pelos labirintos do futuro, qual um pássaro profético que dirige seus olhos para trás quando descreve o que pertence ao futuro, o primeiro niilista perfeito da Europa, mas que ultrapassou o niilismo, tendo-o vivido em sua alma-e vendo atrás de si, abaixo de si, longe de si 2. Não nos enganemos quanto ao sentido do título que quer tomar este evangelho do futuro. "Vontade de Potência. Ensaio de uma transmutação de todos os valores"-nesta fórmula expressa-se um contramovimento, quanto à origem e à missão; um movimento que, num futuro qualquer que seja, substituirá o niilismo total; mas que admite sua necessidade, lógica e psicológica: que absolutamente virá depois dele e por ele. Por que se impõe desde já a vinda do niilismo? Porque precisamente foram os valores, predominantes até o presente, que no niilismo alcançaram as últimas conseqüências; porque o niilismo é o último limite lógico dos grandes valores e de nosso ideal; porque precisamos transpor o niilismo para compreendermos o verdadeiro valor dos "valores" do passado... Não importa qual seja esse movimento, dia virá em que teremos necessidade de valores novos... 1 Nietzsche não emprega aqui o termo cinismo na acepção pejorativa comum, mas no sentido filosófico-ético do desprezo às convenções da opinião pública e da moral. Esta acepção é a decorrente da escola de Antístenes, ou escola Cínica. Ao jogar juntos os dois vocábulos: "cinismo e inoc6encia", Nietzsche caracteriza, de antemão, seu espírito dialético e polêmico: falar com cinismo significa: sem se preocupar com as convenções. E com inocência, significa, sem segundas intenções, com clareza, pureza e dignidade 2 Nietzsche já se confessa niilista. Segundo sua análise, podemos dividir os niilistas em positivos e negativos, e a estes, subdividi-los em ativos e passivos. Assim o próprio Nietzsche é um "niilista positivo e ativo", contrastando com os cristãos que são "niilistas negativistas passivos", ou os socialistas da esquerda, que são "niilistas negativistas ativos". Essa classificação é puramente exemplificativa. No entanto, convém esclarecer que o sentido de negativo ou positivo se relaciona com o impulso de vida ou de morte, na atuação das doutrinas ou pessoas. Para Nietzsche, predominam os impulsos de morte sobre os de vida, tanto no cristianismo como no socialismo. A interpretação de Lichtenberger, que viu em Nietzsche um negativista ativo, não procede, a não ser julgado do ponto de referência cristão. a) Niilismo, uma condição normal.-Niilismo: falta-lhe a finalidade: a resposta à pergunta "Para quê?"-Que significa o niilismo? Que os valores superiores se depreciam. Pode ser indício de força, pode o vigor do espírito aumentar até parecerem impróprios os fins que até então desejava alcançar. ("convicções", 'artigos de fé") (-: porque a fé expressa geralmente a necessidade de condições de existência, a submissão à autoridade de certa ordem de coisas que prospere e desenvolva um Sei, proporcionando-lhe a aquisição da potência...); por outra parte, o indício de força, insuficiente para erigir a si mesma uma finalidade, uma razão de ser, uma fé. Alcança o máximo de sua força relativa como força violenta de destruição: como niilismo ativo. Poderíamos dar como seu oposto o niilismo fatigado que não mais ataca: a mais conhecida de suas formas é o budismo, que é niilismo passivo, como sinal de fraqueza; a atividade do espírito pode estar fatigada, esgotada, de tal forma que os fins e valores preconizados até o presente pareçam impróprios e não mais se imponham, de sorte que a síntese dos valores e dos fins (sobre os quais repousa toda cultura sólida) se decomponha, e que os diferentes valores se guerreiem entre si; uma desagregação...; que tudo o que alivia, cura, tranqüiliza, adormenta, venha em primeira plana, sob roupagens diversas, religiosas ou morais, políticas ou estéticas, etc. O niilismo representa um estado patológico intermediário (-patológica é a desmedida generalização, a conclusão que não tende a nenhum sentido-): ou porque as forças produtivas ainda não estejam suficientemente sólidas, ou porque a decadência ainda hesitante não tenha descoberto seus meios. b) Condição desta hipótese.-Que absolutamente não existe verdade; que não há uma modalidade absoluta das coisas, nem "coisa em si" 6. Isto propriamente nada mais é que niilismo, e o mais extremo niilismo. Ele faz consistir o valor das coisas precisamente no fato de que nenhuma realidade corresponde nem correspondeu a tais valores, os quais são nada mais que um sintoma de força por parte dos que_estabelecem escalas de valor, uma simplificação para conquistar a vida. 3. A pergunta do niilismo "para quê?" vem do uso, até hoje dominante, graças ao qual o fim parecia fixado, dado, exigido de fora-quer dizer, por alguma autoridade supra-humana. Quando desaprenderam a crer nessa autoridade, procuraram, segundo uso antigo, outra que soubesse falar a linguagem absoluta e ordenar desígnios e encargos. A autoridade da consciência é agora sobretudo, uma compensação para a autoridade pessoal (quanto mais a moral se emancipa da teologia mais se torna imperiosa). Ou então é a autoridade da razão. Ou o instinto social (o rebanho). Ou ainda a história com seu espírito imanente, que tem o seu fim em si própria, e à qual podem confiadamente se entregar. Desejariam desviar o querer, a vontade de um objetivo, o risco que poderiam correr ao marcar uma finalidade para si mesmos; desejariam desobrigar-se da responsabilidade (aceitariam o fatalismo). Enfim: a felicidade, e, com um pouco de "tartufismo", a felicidade do maior número. Dizem: 1) E de todo desnecessário um fim determinado; 2) é impossível prever esse fim. Agora quando a vontade seria necessária em sua mais forte expressão, é justamente quando é mais fraca e mais pusilánime. Desconfiança absoluta quanto à força organizadora da vontade de conjunto. (Época em que todas as apreciações "intuitivas" vêm, uma após outras, em primeira categoria, como se pudéssemos obter urna direção por intermédio c1elas, e como se dessa direção nos víssemos privados se procedêssemos de outra forma.) "Para quê?"-Exige uma resposta 1) da consciência, 2) do instinto de felicidade, 3) do "instinto social" (rebanho), 4) da razão ("espírito"),-suposto que não estejamos obrigados a querer, a fixar-nos um motivo. Depois sobreveio o fatalismo: "absolutamente não há resposta", mas "para alguma parte estamos indo", "é impossível querer um fim",-com resignação... ou revolta... Agnosticismo em relação à finalidade. Depois sobreveio a negação considerada como explicação da vida: a vida considerada como algo 6 Neste caso o sentido de "coisa em si" é o metafisico (Ding an Sich), pelo qual uma coisa subsiste em si mesma sem supor outra coisa, segundo o conceito kantiano e não no conceito realista vulgar de existência fora da representação. Mas Nietzsche, em negando a "coisa em si", nega o conceito ôntico, o noumeno da acepção pós.kantiana, que afirma uma "existência" absoluta, fora da relação dialética, em movimento. Nietzsche aceita somente a relação trágico-dialética das coisas, em seu movimento de contradição, como já expusemos no prólogo. que se concebe sem valor e que se acaba por suprimir). 4. A mais geral característica dos tempos modernos: o homem desmereceu, ante seus próprios olhos, infinitamente em dignidade. Foi durante muito tempo centro e o herói trágico da existência, em geral; depois se esforçou ao menos em afirmar o seu parentesco com a porção decisiva da existência que possuía valor por si mesma-como fazem todos os metafísicos que querem manter a dignidade do homem, com a crença de que os valores morais são valores cardeais. Aquele que abandonou a Deus prende-se com redobrada severidade à crença na moral. Crítica do niilismo 5. O niilismo, como condição psicológica, aparecerá, primeiramente, logo que sejamos forçados a dar a tudo o que acontece o "sentido" que aí não se encontra: dessa forma, quem procura, acabará por perder a coragem. O niilismo é pois o conhecimento do longo desperdício da força, a tortura que ocasiona esse "em vão", a incerteza, a falta de oportunidade de se refazer de qualquer maneira que seja, de tranqüilizar-se em relação ao que quer que seja-a vergonha de si mesmo, como se fôramos ludibriados por longo tempo... Esse sentido talvez fora: ou o "cumprimento" de um cânone moral superior em tudo o que tem ocorrido, o mundo moral; ou o aumento do amor e harmonia nas relações entre os seres ou parte da realização do estado de felicidade universal; ou até a marcha para um não-ser universal.-Uma finalidade qualquer basta para atribuir-lhe um sentido. Todas essas concepções têm de comum o quererem alcançar algo pelo seu próprio processus:-e logo se percebe que por esse "eterno vir-a-ser" 7 nada se realizou, nada se atingiu... Assim a...