2019, Life and Death
Vida e Morte Vida e Morte são acontecimentos inerentes à existência do homem desde sua origem na terra. Para manter a sobrevivência frente aos eventos traumáticos desenvolveu defesas filogenéticas que nortearam sua evolução. Freud (1916-1917) diferenciou a neurose traumática das neuroses de defesa, mas abdicou de seu estudo alegando falta de subsídios da biologia na época. Retomo-o usando conhecimentos atuais das ciências biológicas e minha prática clínica como psiquiatra e psicanalista. Por exemplo, Kandel (2000), prêmio Nobel de Medicina, demonstrou que o acervo dessas defesas filogenéticas é armazenado nas amígdalas cerebrais, constituindo a memória implícita cujo funcionamento é semelhante ao do inconsciente freudiano. Outra referência é o conceito do evento traumático, segundo o DSM-IV (1994), “como uma experiência que a pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que envolveram ameaça de morte ou de grave ferimento físico, ou ameaça a sua integridade física ou à de outros; a pessoa reagiu com intenso medo, impotência ou horror”. Esse evento gera sintomas de revivência do trauma em flashbacks de memória, sonhos repetitivos com o evento e sintomas de esquiva do local ou pessoas envolvidas. Scaer (2001) mostrou a importância da predisposição para o desenvolvimento da sintomatologia do trauma ao apontar que vítimas de acidentes automobilísticos em alta velocidade não desenvolviam sintomas traumáticos, em oposição a outros que adoeciam vítimas de acidentes a dez quilômetros. Harlow (1958) apontou que essa predisposição é gerada por trauma em período precoce do desenvolvimento. Fez experiências com ratos separados de suas matrizes logo após o nascimento e outro dez dias. Os primeiros ao retornarem ao contato após uma semana com as matrizes mantinham-se separados e não alimentavam. O mesmo não sucedeu com o segundo grupo, voltando a socialização. Os estudos de Selye (1936) foram seminais para entender o trauma, o estresse e sua sintomatologia, assim como os de Canon (1929) sobre a homeostase. Alguns psicanalistas, além de Freud, também contribuíram. Winnicott (1988) escreveu: “O caos é primeiramente uma ‘quebra na linha do ser’, e a recuperação ocorre através de uma revivência da continuidade; se a perturbação ultrapassa um limite possível de ser tolerado, de acordo com as experiências anteriores ‘de continuidade do ser’, ocorre que devido às leis elementares da economia, uma quantidade de caos passa a fazer parte da constituição do indivíduo”. Tustin (1986) contribui com a ênfase dada às experiencias sensoriais geradas por elementos do próprio corpo como a urina, a saliva, os dedos, a língua e outros. Segundo ela para satisfação do princípio do prazer. Em verdade, promovem o apaziguamento da angústia de morte presente, como fazem os adultos que se coçam, teclam o celular e outros. Seus estudos foram confirmados por Piontelli (1977) com ultrassonografia fetal mostrando o feto coçando os órgãos genitais e as orelhas. Ogden (1989b) auxiliou ao escrever: "a intensidade e o ritmo das experiências sensoriais são ditadas pela filogênese. Não existe ainda um sujeito que interpreta. Existe, apenas, a noção de uma experiência em uma superfície sensorial relacionada aos processos vitais”. Continua: "dependendo do ritmo, regularidade e intensidade desta experiência, começa o sentimento de lugar... onde estou e como sou”. Associando estes estudos formulei a hipótese de que a vítima do trauma desenvolve para se manter vivo uma regressão somática filogenética no qual o consumo de oxigênio pela célula é diminuído ao mínimo para manutenção de suas funções vitais. Essa regressão somática foi descrita por Blackstone et al. (2005) como estado de suspensão animada, quando fazia experiências com órgãos humanos para transplante em receptores distantes. Mediante a Retirada Autista o corpo funciona como uma “mãe suficientemente boa” (Winnicott, 1962) como sucede na anorexia nervosa. A psicoterapia psicanalítica é o principal elemento terapêutico pela valorização do setting e o conhecimento da transferência e contratransferência, além da recuperação da desconexão cérebro-hipotálamo. É fundamental aceitar o paciente vivendo no mundo dos semivivos, onde se encontra mais apaziguado. Assim assistido, desapega do último recurso que lhe resta para sobreviver ou se apaziguar: apelar para o próprio corpo como uma segunda mãe. Foi assim com minha paciente de 32 anos com memórias diurnas e sonhos repetitivos do trauma da separação dos pais aos quatro anos e os abusos sexuais na infância por parte do padrasto. Chega no horário combinado na sessão no fim de semana. - Perguntou-me logo o que estava achando da sua doença. - Lembrei-me da chegada no horário certo, do relato anterior desinibido dos rituais da anorexia, da separação dos pais e dos abusos sexuais na infância, lembranças que indicavam haver ligação minha com sua pessoa, um fato para valorizar em termos de contratransferência. - Disse-lhe que poderia ajudá-la se continuássemos conectados em estado de confiança recíproca para nos servir de sustentação. Conclusão O biológico e a mente vem sendo considerado por especialistas como dois universos distintos sem pontos de união. Esse extremismo é prejudicial para o progresso da ciência.