Como aparece na sua superfície (ou manifestação) linguística, um texto representa uma cadeia de artifícios de expressão que devem atualizados pelo destinatário. Visto que neste livro resolvemos ocupar-nos somente de textos escritos (e, à medida que formos avançando, limitaremos as nossas experiências de análise a textos narrativos), falaremos doravante de "leitor", em vez de destinatário — bem como usaremos indiferentemente Emitente e Autor para definir o produtor do texto. No que concerne à sua atualização, um texto é incompleto, e duas razões: a primeira não se refere apenas aos objetos lingüísticos que nos propusemos a definir como textos (cf. 1.1.), mas qualquer mensagem, inclusive frases e termos isolados. Uma expressão aanece puro flatus vocis enquanto não for correlacionada, com referência a um determinado código, ao seu conteúdo convencionado: neste sentido, o destinatário é sempre postulado como o operador (não necessariamente empírico) capaz de abrir, por assim dizer, o dicionário para toda palavra que encontre e de recorrer a uma série regras sintáticas preexistentes para reconhecer a função recíproca dos termos no contexto da frase. Dizemos então que toda mensagem postula uma competência gramatical da parte do destinatário, mesmo que seja emitida numa língua conhecida somente pelo emitente — excetuados casos de glossolalia em que o próprio emitente aceita que não existe interpretação linguística possível, mas no máximo impacto emotivo e sugestão extralingüística. 36 Abrir o dicionário significa aceitar também uma série de postulados de significado 1 : um termo é em si incompleto também quando recebe uma definição em termos de dicionário mínimo. O dicionário nos diz que o bergantim é uma embarcação, mas deixa como algo implícito à /embarcação/ outras propriedades semânticas. Este problema depende, de um lado, da infinidade da interpretação (a qual, vimos, se fundamenta na teoria peirceana dos interpretantes) e, por outro, remete à temática da implicitação (entailment) e da relação entre propriedades necessárias, essenciais e acidentais (cf. 4.). Um texto distingue-se, porém, de outros tipos de expressão por sua maior complexidade. E motivo principal da sua complexidade é justamente o fato de ser entremeado do não-dito (c f. 1972). "Não-dito" significa não manifestado em superfície, a nível de expressão: mas é justamente este não-dito que tem de ser atualizado a nível de atualização do conteúdo. E para este propósito, um texto, de uma forma ainda mais decisiva do que qualquer outra mensagem, requer movimentos cooperativos, conscientes e ativos da parte do leitor. Dado o trecho textual: (9) João entrou no quarto. "Então voltaste!" exclamou Maria, radiante é evidente que o leitor deve atualizar-lhe o conteúdo através de uma série complexa de movimentos cooperativos. Por ora deixamos de lado a atualização das co-referências (isto é, devemos estabelecer que o /tu/ implícito no uso da segunda pessoa do singular do verbo /voltar/ se refere a João), mas esta co-referência já se tornou possível por uma regra conversacional em cuja base o leitor aceita que, na falta de esclarecimentos alternativos e dada a presença de duas personagens, aquele que fala se dirige necessariamente à outra. Regra conversacional que se articula, porém, em outra decisão interpretativa, ou seja, numa operação extensional efetuada pelo leitor: ele decidiu que, baseado no texto que lhe foi subministrado, é desenhada uma porção de mundo habitada por dois indivíduos — João e Maria, dotados da propriedade de estarem no mesmo quarto. Que Maria, afinal se ache no mesmo quarto de João depende de outra inferência originada pelo uso do artigo definido |o| ou então pela preposição articulada |no|: existe um e somente um quarto de que se fala 2. E resta perguntar-nos se o leitor julga oportuno identificar João e Maria, por meio de índices referenciais, como entidades do mundo externo,