Papers by Susana Guerra

Resumo: Em 1971, António Lobo Antunes é mobilizado para combater em África. Vê assim interrompido... more Resumo: Em 1971, António Lobo Antunes é mobilizado para combater em África. Vê assim interrompido o curso dos dias em Lisboa: privado da companhia da mulher, privado também do contato com familiares e amigos, deixa em suspenso uma vida para dar início a outra – mas isso não é vida. A fragilidade causada pela guerra e a banalização da morte dão-lhe a conhecer um outro grau na manifestação da exceção. É desse lugar que começa a escrever cartas para Maria José, a sua mulher, numa escrita ansiosa que regressa repetidamente a questões ligadas a um cotidiano que pretende recuperar. Ao adentrar-nos na leitura destes breves momentos – tecido de relações cotidianas que constrói com a ida e volta das cartas – pretendemos com o presente trabalho, pensar a forma singular de resistência que oferecem estas cartas escritas em tempos de exceção: uma resistência que tem que ver com o particular, sendo, acima de tudo, palavras de pessoas comuns, situadas por fora do protagonismo militar ou político, que guardam a memória de acontecimentos traumáticos. Pretendemos igualmente contribuir para a abertura aos problemas historiográficos derivados da persistência de uma versão única e cristalizada da história, que insiste em passar a página de um tema que não se encontra encerrado, de uma justiça que tarda, considerando as vozes abaixo da superfície – por uma sociedade contra as políticas de desmemoria, pela recuperação da memória dos tempos da ditadura. Abstract: In 1971, António Lobo Antunes is mobilized to fight in Africa. Therefore, he gets the course of the days in Lisbon interrupted: bereft of the company of his wife, bereft as well of his friends and family, leaves one life in suspension to start another one – but that is not life. The fragility caused by war and the banalization of death let him know another level of exception. From that place, he starts writing letters to Maria José, his wife, with an anxious writing that repeatedly returns to daily matters, which he aims to restore. Taking the reading of these brief moments – a fabric of everyday relations put together by correspondence – this paper aims to think this unique form of resistance offered by this letters written in times of exception: a resistance concerning the private, been, above all, words of common people, with no political nor military role, that keep the memory of traumatic events. We also aim to contribute to open historiographical problems derived from the persistence of a unique version of history for a matter that is not closed, from an overdue justice, considering the voices above the surface – to recover the memory from dictatorship times.

Tanto em Portugal como no Brasil, os crimes cometidos pelos governos autoritários continuam impun... more Tanto em Portugal como no Brasil, os crimes cometidos pelos governos autoritários continuam impunes, e os seus perpetradores livres. A memória desse tempo foi sendo sucessivamente obliterada, reduzida ou desvirtuada, através de formas consensuais de contar a história. Os documentários brasileiros dedicados à recuperação da memória da ditadura de 1964 têm procurado, quer pelo tratamento de material de arquivo, quer pela recolha de testemunhos orais, contornar essa omissão derivada do acesso condicionado aos documentos do período. Por outro lado, o cinema português tem trabalhado os arquivos visuais do regime a par dos testemunhos da resistência, desconstruindo as imagens existentes do salazarismo.Este trabalho pretende explorar o papel que o cinema tem assumido no resgate da memória reprimida, ao denunciar a continuidade de certas estruturas ideológicas e imaginárias na atualidade política, econômica, social e intelectual, que permanecem e se normalizam entre o cotidiano, comprometendo as experiências democráticas conquistadas. A produção brasileira Diário de uma busca (2011) e as produções portuguesas Natal 71 (1999) e Fantasia lusitana (2010) colocam-nos cara a cara com a realidade dupla da nossa atualidade, na qual reconhecemos, debaixo da superfície frágil das democracias em que vivemos, a agitação de uma história que não se encontra encerrada.

Portugal e Tailândia
Do fim da extraterritorialidade à entrada de Portugal na CEE (1925-1986)
Por... more Portugal e Tailândia
Do fim da extraterritorialidade à entrada de Portugal na CEE (1925-1986)
Portugal and Thailand
From the end of extraterritoriality to portuguese admission on CEE (1925-1986)
O presente trabalho pretende dar continuação à investigação desenvolvida no mestrado, onde estudámos as relações entre Portugal e a Tailândia entre 1820 e 1925. Tentando aprofundar os estudos já existentes, reparar as lacunas e as omissões, e alargar o alcance das questões levantadas, propusemo-nos abordar então as relações entre ambos os países, colocando o acento sobre o singular regime jurídico-político que permitiu a Portugal manter uma presença privilegiada na região, numa nação que – inclusive sofrendo a presença de potências estrangeiras – nunca chegaria a constituir uma colónia.
Assim, do que se trata no presente estudo é de deslocar (alargar) a atenção sobre o período imediatamente posterior, até a atualidade recente, procurando – a partir do levantamento dos documentos existentes – reconstruir as especificidades políticas, comerciais, económicas e culturais da presença portuguesa e luso-asiática na Tailândia durante o século XX.
A hipótese, que teve origem na exploração dos documentos do arquivo associado, diz respeito às relações entre Tailândia e Portugal e constata que as relações entre ambos os países estão marcadas, no século XX, por duas facetas: 1) a primeira, que vai desde a assinatura do tratado de extraterritorialidade ao início do século XX, e que se caracteriza por tratados bilaterais fortes, porém desaproveitados económica, política e geoestrategicamente por Portugal; 2) a segunda, marcada por um período de ausência de tratados relevantes, por uma pretensão de renovar os laços que apenas conduz à assinatura de pequenos tratados de pouca significação, e a uma série de encontros diplomáticos marcados por discursos grandiloquentes povoados de declarações de boas intenções, mas que não contribuem para um incremento nas relações entre os dois países, e cuja importância é basicamente a sua instrumentalização simbólica, por parte de ambos os estados.
A exploração da história contemporânea recente das relações entre a Tailândia e Portugal, em todo o caso, implica objetivos que se repartem segundo duas dimensões fundamentais: 1) a pesquisa do património documental e monumental comum, sobretudo a restituição de um arquivo primário rigoroso, inexistente até à data; e 2) a sua perspectivação histórica sobre os eixos da diplomacia, da política, da cultura e do comércio.
Por outro lado, essa análise tem por objetivo, menos a história geral das relações internacionais, que um trabalho sobre a história das relações bilaterais entre Portugal e Tailândia, muito embora na qual a consideração das relações internacionais jogue um papel importante. Nessa medida, a teoria das relações internacionais não domina nem sobredetermina a forma da investigação, mesmo se considerações teóricas sobre as relações internacionais possam ser pontualmente encontradas, respondendo a um objetivo explicativo concreto.
Acreditamos, no fundo, que a reconstrução do arquivo associado à história dos contatos e os tratados, as trocas e as negociações entre Portugal e Tailândia, isto é, a disponibilização desse material documental, organizado criticamente, assim como a sua contextualização crítica, poderá chegar a contribuir para o desenvolvimento de outras investigações relacionadas com a presença de Portugal no Sudeste Asiático.
Na primeira parte, sobre a política externa de Portugal entre 1890 e 1986, faremos a análise do contexto político português desde finais do séc. XIX e ao longo do século XX, apresentando as linhas fundamentais que marcaram a atuação dos diversos regimes políticos nacionais na concepção da sua política externa.
A segunda parte contextualiza a evolução política tailandesa, desde a assinatura dos tratados desiguais até finais do século XX, dando especial relevo: 1) ao modo como durante o processo político de consolidação de um estado democrático, se verificou a emergência de uma elite governativa de cariz militar, 2) ao modo como a Tailândia, logrando a saída da esfera de influência francesa e britânica em defesa da sua soberania nacional, acabando o país subordinado à política externa de Washington.
A terceira parte, baseada na sua maioria em documentos do Arquivo Histórico-Diplomático do MNE, refere-se aos contatos entre Portugal e a Tailândia durante a era dos tratados desiguais, pela análise dos tratados bilaterais estabelecidos durante esse período: o tratado de 1859, que estabeleceu o regime de extraterritorialidade português; o tratado de 1925 que o revogou; o tratado de 1938 que pôs fim ao direito de evocação português na Tailândia. Damos conta do processo de estabelecimento dos portugueses na Tailândia desde o princípio do século XVI, inserido no contexto das relações comerciais entre europeus e siameses, assim como do modo em que oscilaram estas relações e os tratados que as consagraram ao longo de diversas épocas. Este capítulo vai incidir não só sobre o processo que determinou o fim do regime de extraterritorialidade portuguesa na Tailândia, mas também na forma em que este processo ganhou forma à medida que ia sendo apresentado a todos os países que gozavam de direitos de jurisdição consular no reino. Por fim, a descrição do processo negocial do último tratado comercial luso-siamês, assinado em 1938, que erradicaria em definitivo o direito de evocação decorrente da extraterritorialidade, e todos os privilégios ocidentais detidos na Tailândia, fundando assim uma nova era siamesa de tratados em termos de equidade com as outras nações, que consagraria a posição internacional da Tailândia em bases renovadas.
A quarta parte, também ela baseada na correspondência diplomática entre o consulado em Banguecoque e o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, privilegia igualmente a imprensa nacional, para a análise dos contatos estabelecidos entre Portugal e a Tailândia durante o século XX, sob a forma de visitas de estado – primeiro por Chulalongkorn em 1897, e, mais tarde, por Bhumibol em 1960, bem como a deslocação de Sampaio à Tailândia, na qualidade de presidente da república, em 1999. O capítulo aborda igualmente os últimos tratados assinados entre ambos os países (1985, 1989 e 2001).
O desenvolvimento em quatro partes do presente trabalho é completado por uma série de apêndices que dizem respeito ao material documental associado à análise proposta, e apresenta mapas, cronologias, transcrições de documentos e tratados, assim como fotografias de arquivo.
Grande parte da história do século 20 português encontra-se determinada pelo Estado Novo. Durante... more Grande parte da história do século 20 português encontra-se determinada pelo Estado Novo. Durante cinco décadas, o regime sujeitou a população repressivamente, ao mesmo tempo que difundia a imagem ideal de um Portugal idílico, quando se tratava do país mais miserável da Europa ocidental. O culminar desta situação tomou a forma de uma guerra em 1961, opondo a metrópole aos movimentos de independência das colônias em África. Este trabalho pretende explorar a obra cinematográfica de Margarida Cardoso, tomando o seu mais recente filme -Yvone Kane, para uma aproximação aos modos em que põe em jogo o sentido de uma história em grande medida ignorada pelas narrativas oficiais.

Imediatamente a seguir à revolução dos cravos (ou ao mesmo tempo que a revolução tinha lugar, em ... more Imediatamente a seguir à revolução dos cravos (ou ao mesmo tempo que a revolução tinha lugar, em alguns casos), o cinema português releu, criticou e desconstruiu as imagens existentes do Estado Novo. Essa ressignificação das imagens da ditadura mais longa da Europa contemplava entre outras coisas: 1) a crítica do estado corporativista e das intervenções militares no ultramar pelo cinema militante, que a seguir à revolução procurou fazer do cinema uma arma de combate (Scenes from the Class Struggle in Portugal (1976), Bom Povo Português (1981), etc.); 2) as tentativas de dar um sentido às memórias traumáticas da ditadura e da guerra colonial que, a partir da década de 90, dão o tom à ficção cinematográfica mainstream (A Costa dos Murmúrios (2004), Capitães de Abril (2000), etc.); e 3) a suspensão das narrativas fechadas e das imagens consensuais pelos documentários que, nos últimos anos, trabalharam os arquivos visuais da ditadura e os testemunhos da resistência, tornando impossível qualquer relato justificador ou apaziguador (Fantasia Lusitana (2010), Natureza Morta (2005), 48 (2009), etc.). Noutras palavras, a intensidade e complexidade da batalha, ao mesmo tempo política e imagética, que no cinema português teve lugar nas últimas décadas, em ordem a apropriar-se do passado para atuar sobre o presente, não deixa de afirmar o caráter aberto e inconcluso da nossa história. O presente trabalho pretende simplesmente colocar essa batalha em perspectiva, dando conta do alcance e dos limites da imagem cinematográfica para tomar partido, fazer sentido ou exercer a reserva crítica. ABSTRACT: Right after the Carnation Revolution (or even simultaneously) Portuguese cinema revisited, deconstructing at the same time, the remaining images of Portuguese Estado Novo. That ended up giving a new meaning to these images from the longest European dictatorship, considering some points such as: 1) the critic of corporative state and its military interventions in the Ultramar through militant cinema, which after the revolution tried to use cinema as a tool to fight (Scenes from the Class Struggle in Portugal (1976), Bom Povo Português (1981), etc.); 2) the efforts that tried to give a sense to traumatic memories of dictatorship and war, which since the 90's, provides the tone to mainstream films (A Costa dos Murmúrios (2004), Capitães de Abril (2000), etc.); and 3) the suspension of closed narratives and consensus images provided by documentaries that worked the dictatorship visual archives as well as its testimonies of resistance, in a way that turned any justifier account to became impossible (Fantasia Lusitana (2010), Natureza Morta-Still LIfe (2005), 48 (2009), etc.). The complexity of this battle, being political as well as imagetic, took place in Portuguese cinema in the last decades, in order to appropriate the past to work over the present, not without claim the open and unfinished character of our history. This paper merely aims to put this battle into perspective, taking account of both the extent and limitations brought by the cinematographic image, in order to take sides, to make sense or to practice critical exemption.

Em 40 anos de democracia, o cinema português foi assumindo uma visão crítica face ao passado rece... more Em 40 anos de democracia, o cinema português foi assumindo uma visão crítica face ao passado recente do país. Uma nova geração de realizadores abriu espaço a um questionamento do Estado Novo, através do trabalho sobre os arquivos materiais da ditadura, da recuperação de testemunhos e a exploração do poder das imagens. Esse movimento teve como consequência um enriquecimento, a partir dos jogos da ficção, das questões colocadas à história.
João Canijo nos oferece uma perspectiva singular sobre esse passado reprimido, numa obra que visa a revisitação do regime salazarista. Em Fantasia Lusitana (2010), parte da recuperação de imagens oficiais, problematizando os sentidos possíveis dessas imagens, e questionando a ideia, passada pela propaganda, da neutralidade e paz portuguesas durante a segunda guerra mundial.
Ao expor essas imagens, fora do discurso da propaganda que as produzira, deslocadas do seu espaço de circulação e de funcionamento originais, Canijo pretende suspender o seu funcionamento ideológico. Pelo resgate de um ruído de fundo, oculto mas presente, que incomoda, abala o nosso olhar, preso à autoridade das representações consagradas. Então, abertas a novos significados, as imagens deixam de ser meros acessórios do mito salazarista, para passar a perturbá-lo, desvelando uma história permeada de traumas e de conflitos, de tensões sociais e de repressão, de policiamento das consciências e de administração da miséria.
Por outras palavras, Canijo revela os abusos do regime e coloca os relatos oficiais em questão, contrariando a historiografia hegemônica, que muitas vezes limita-se a perpetuar o tabu e a reproduzir o mito.
O presente trabalho pretende analisar criticamente a obra de Canijo, dando conta do alcance e dos limites da imagem cinematográfica para tomar partido, fazer sentido ou exercer a reserva crítica em relação aos problemas da historiografia recente.

De la misma forma que Brasil, Portugal vivió en el siglo XX una extensa dictadura. De la misma fo... more De la misma forma que Brasil, Portugal vivió en el siglo XX una extensa dictadura. De la misma forma que en Brasil, los crímenes cometidos por el Estado portugués en ese período no fueron juzgados, continúan impunes, y sus perpetradores libres. La memoria de ese tiempo, la memoria de las víctimas, fue obliterada, reducida o desvirtuada, a través de formas consensuales de contar la historia.
La abertura democrática de estos países, aliada a la inquietud ante la necesidad de recuperar estas memorias imprimió al cine un cuño excepcional, dando origen a una vasta producción crítica. En América Latina, los documentales brasileros dedicados a la recuperación de la memoria de la Dictadura Militar buscan, a través del tratamiento de material de archivo, así como a través del recogimiento de testimonios orales, contornar la omisión proporcionada por el acceso condicionado de los documentos del régimen. Por otra parte, luego de la revolución que puso fin a la dictadura portuguesa del Estado Novo, el cine portugués ha trabajado los archivos visuales del régimen a la par de los testimonios de la resistencia, deconstruyendo las imágenes existentes del salazarismo.
Este trabajo pretende explorar el alcance y los límites de la imagen cinematográfica para tomar partido, hacer sentido o ejercer la reserva crítica, a través de estas relecturas de un pasado autoritario. Analizaremos tres películas que vuelven la mirada sobre las dictaduras de ambos países a partir de sus perspectivas singulares: la producción brasilera Diário de uma busca (2010), de Flavia Castro, y las producciones portuguesas Natal 71(1999), de Margarida Cardoso, y Fantasia lusitana (2010), de João Canijo. Las tres películas resaltan la necesidad de una crítica de la actualidad, que se vuelve sobre todo hacia el modo en que se incorporan en el presente algunas formas heredadas de ese pasado, que permanecen y se normalizan en medio de nuestro cotidiano democrático: la impunidad, lo innombrable, la obliteración de lo acontecido por la historiografía, la permanencia de los mitos conciliadores.

O presente artigo pretende oferecer uma síntese crítica das relações entre Portugal e a Tailândia... more O presente artigo pretende oferecer uma síntese crítica das relações entre Portugal e a Tailândia no século XX, e é o resultado de uma pesquisa conduzida entre 2005 e 2012 no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e no Arquivo Histórico de Macau (China). Procura reconstruir as especificidades políticas, comerciais, económicas e culturais da presença portuguesa na Tailândia, constatando que as relações bilaterais entre os dois países foram marcadas por: 1) a assinatura de um tratado de extraterritorialidade em meados do século XIX, desaproveitado económica, política e geoestrategicamente por Portugal; 2) um período de ausência de tratados relevantes no século XX, mas assinalado por uma série de encontros diplomáticos e por discursos grandiloquentes, povoados de declarações de boas intenções, que não contribuíram para incrementar as relações, e cuja importância está na sua instrumentalização simbólica por parte de ambos os Estados.
Uma questão que levanta o estudo da história da Ásia é que esta constrói-se, em princípio, da mem... more Uma questão que levanta o estudo da história da Ásia é que esta constrói-se, em princípio, da memória que o ocidente tem da mesma, uma memória parcial que implica uma marcada perspectiva “orientalista”. Partindo da análise de duas produções de Hollywood (“Ana e o Rei do Sião” e “O Rei e Eu”), veremos em que medida o cinema pode funcionar historicamente ao nível da justificação ideológica do colonialismo, colocando em cena uma história individual (a relação formativa e romântica entre Anna, preceptora inglesa na corte siamesa do século XIX, com o rei do Sião) como elaboração feliz de um conflito político cujas secretas violências vêm encobrir, naturalizando uma relação de forças desigual - a ocidentalização forçada do Sião, num momento em que fazia-se sentir em pleno a expansão do imperialismo britânico pelo continente asiático.
A memória do país colonizado é a memória da violência, que recorda, sobretudo, a violência do ocu... more A memória do país colonizado é a memória da violência, que recorda, sobretudo, a violência do ocupante sobre o submetido. A história, e a história pós-colonial, tem por tarefa fazer com que a memória aflore, na espera de que o sujeito dessa memória possa fazer algo mais que recordar com resignação e se liberte do seu condicionamento histórico, fazendo outra história possível. Detrás da abertura siamesa ao ocidente e seus valores, estiveram diversos tipos de violência, que foram ocultados por um discurso de progresso que eliminou essa violência da memória. Esta rearticulação da memória numa história sem falhas é um produto de uma narração que encontra a sua forma na história que o ocidente conta sobre si, e que encontra o respaldo material nas potências imperiais, deixando o Sião profundamente afetado pelo seu encontro com o Ocidente.

Durante o século XIX, o expansionismo europeu estabeleceu na Ásia formas de poder que geraram esp... more Durante o século XIX, o expansionismo europeu estabeleceu na Ásia formas de poder que geraram espaços coloniais em países soberanos. Como alternativa à ocupação efetiva, incidiram sobre a justiça local, traduzindo-se em uma apropriação que levou à convivência de vários sistemas jurídicos em um mesmo território. Essa jurisdição territorial foi atenuada por um regime jurídico excepcional conhecido como extraterritorialidade, e que descreve, no caso do Sião, a condição da lei existente, na qual os estrangeiros estavam isentos da jurisdição local e sujeitos às suas autoridades nacionais, em virtude de tratados. Este artigo pretende ser uma contribuição para os estudos pós-coloniais, multiplicando os conceitos que nos ajudam a pensar as diversas apropriações dos espaços não europeus e que não se reduzem apenas a questões de soberania territorial, mas que comportam dimensões jurídicas, econômicas e culturais.
palavras-chave
: Extraterritorialidade; Sião; Imperialismo

Palavras-chave: Portugal, Tailândia-Sião, Extraterritorialidade, Diplomacia, Relações Internacion... more Palavras-chave: Portugal, Tailândia-Sião, Extraterritorialidade, Diplomacia, Relações Internacionais Resumo: O presente trabalho pretende dar continuação à investigação desenvolvida no mestrado, em que estudámos as relações entre Portugal e a Tailândia entre 1820 e 1925. Tentando aprofundar os estudos já existentes, reparar as lacunas e as omissões, e alargar o alcance das questões levantadas, propusemo-nos abordar então as relações entre ambos os países, colocando o acento sobre o singular regime jurídico-político que permitiu a Portugal manter uma presença privilegiada na região, numa nação que -inclusive sofrendo a presença de potências estrangeiras -nunca chegaria a constituir uma colónia. Assim, do que se trata no presente estudo é de deslocar (alargar) a atenção sobre o período imediatamente posterior, até a atualidade recente, procurando -a partir do levantamento dos documentos existentes -reconstruir as especificidades políticas, comerciais, económicas e culturais da presença portuguesa e luso-asiática na Tailândia durante o século XX. A hipótese diz respeito às relações entre Tailândia e Portugal e constata que as relações entre ambos os países estão marcadas, no século XX, por duas facetas: 1) a primeira, que vai desde a assinatura do tratado de extraterritorialidade ao início do século XX, e que se caracteriza por tratados bilaterais fortes, porém desaproveitados económica, política e geoestrategicamente por Portugal; 2) a segunda, marcada por um período de ausência de tratados relevantes, por uma pretensão de renovar os laços que apenas conduz à assinatura de pequenos tratados de pouca significação, e a uma série de encontros diplomáticos marcados por discursos grandiloquentes povoados de declarações de boas intenções, mas que não contribuem para um incremento nas relações entre os dois países, e cuja importância é basicamente a sua instrumentalização simbólica, por parte de ambos os estados. A exploração da história contemporânea recente das relações entre a Tailândia e Portugal, em todo o caso, implica objetivos que se repartem segundo duas dimensões fundamentais: 1) a pesquisa do património documental e monumental comum, sobretudo a restituição de um arquivo primário rigoroso, inexistente até à data; e 2) a sua perspectivação histórica sobre os eixos da diplomacia, da política, da cultura e do comércio. Por outro lado, essa análise tem por objetivo, menos a história geral das relações internacionais, que um trabalho sobre a história das relações bilaterais entre Portugal e Tailândia, muito embora na qual a consideração das relações internacionais jogue um papel importante. Nessa medida, a teoria das relações internacionais não domina nem sobredetermina a forma da investigação, mesmo se considerações teóricas sobre as relações internacionais possam ser pontualmente encontradas, respondendo a um objetivo explicativo concreto. Acreditamos, no fundo, que a reconstrução do arquivo associado à história dos contatos e os tratados, as trocas e as negociações entre Portugal e Tailândia, isto é, a 227-343 DHEPI -Pós-graduações (2011-2012
Este trabalho procura ser uma contribuição para o estudo das relações entre Portugal e a Tailândi... more Este trabalho procura ser uma contribuição para o estudo das relações entre Portugal e a Tailândia, mais especificamente, as que tiveram lugar entre 1820 e 1925, e que levaram Portugal, dentro do contexto do império na Ásia, a assumir um regime de extraterritorialidade num reino do Sudeste Asiático que não era uma colónia europeia, mas também procura tratar de fazer a história que conduziu ao final da mesma, enquanto tenta traçar algumas das especificidades políticas, comerciais e económicas de que se revestiu a presença portuguesa e luso-asiática durante este período.
Traducciones by Susana Guerra

As Crónicas do anjo cinzento foram publicadas pela primeira vez na Argentina em 1988. 1 Alejandro... more As Crónicas do anjo cinzento foram publicadas pela primeira vez na Argentina em 1988. 1 Alejandro Dolina somava-se assim a uma estirpe de cartógrafos improváveis que perpassa a história da literatura latino-americana. Tal como o Villa Crespo de Marechal, o Palermo de Borges, a Paris de Cortázar, o Bairro de Flores procurava ser ao mesmo tempo expressão de uma vida singular e cifra do mundo. Entre a Macondo de García Marquez e a Santa María de Onetti, encarava essa empresa com uma rara mistura de nostalgia e esperança. O seu humor melancólico deixou uma marca de idealismo desenganado na minha geração, e seguramente contribuiu para a sobrevivência da narrativa tradicional, cujo desaparecimento lamentara Walter Benjamin (quem também invocou um anjo menor para olhar para trás na hora de encarar o futuro). Homens sensíveis, refutadores de lendas, heróis desiguais e falsos impostores povoam as suas páginas, que não conduzem a parte alguma, e nas quais não é impossível perder-se (como nas ruas do Parque Chas).

Quando se derrota uma causa justa, quando se humilham os valentes, quando homens colocados à prov... more Quando se derrota uma causa justa, quando se humilham os valentes, quando homens colocados à prova no fundo das minas são tratados como lixo, quando se cagam sobre o nobre e os juízes na corte acreditam mentiras e aos caluniadores se lhes paga por caluniar com salários que poderiam manter as famílias de uma dúzia de mineiros em greve, quando os policiais gorilas, com os seus bastões ensanguentados, se encontram, não no banco dos acusados, mas na lista das condecorações, quando se desonra o nosso passado e se desprezam as suas promessas e sacrifícios com sorrisos de ignorância e maldade, quando famílias inteiras chegam a suspeitar que aqueles que exercem o poder são surdos à razão e a toda suplica e que não há forma de apelar em parte nenhuma, quando pouco a pouco compreendes que apesar das palavras que possa haver no dicionário, apesar do que diga a rainha ou informem os correspondentes parlamentares, apesar da maneira na qual o sistema se autodenomine para mascarar a sua desvergonha e egoísmo, quando pouco a pouco compreendes que Eles se propuseram quebrar-te, se propuseram quebrar a tua herança, tuas destrezas, tuas comunidades, tua poesia, teus círculos, teu lar e, no possível, também os teus ossos, quando finalmente a gente compreende isso, também pode ouvir, soando dentro da sua cabeça, a hora dos assassinatos, da vingança justificada. Nos últimos anos, durante noites sem dormir, em Escócia e Gales do Sul, em Derbyshire e Kent, em Yorkshire, Northumberland e Lancashire, muitos ouviram, estou seguro, deitados reflexivos nas suas camas, a chegada dessa hora. E nada poderia ser mais humano, mais terno, que uma visão assim: os imisericordiosos executados sumariamente pelos misericordiosos. A palavra ternura é a que nos é entranhável e a que Eles nunca podem entender, porque não conhecem o seu significado. Essa visão está surgindo em todo o mundo. Os heróis vingadores agora são imaginados e esperados. Já são temidos pelos imisericordiosos e benditos por mim e quiçá também por ti.
Drafts by Susana Guerra

Carmen Rocher 2 [CR]: La colectiva surge como un processo de vida. En la segunda gestación, la de... more Carmen Rocher 2 [CR]: La colectiva surge como un processo de vida. En la segunda gestación, la de mi hija, yo venia de haber tenido una cesárea en 2015, de la primera gestación, la de mi hijo, adonde me encontré en una situación de violencia obstétrica, muchas veces invisibilizada, naturalizada. En ese momento salí feliz y me conecté con mi hijo. Pero después me di cuenta de que estaba en un proceso de parto sin dolor y que insistentemente me ofrecían la epidural o oxitocina sintética. Drogas que luego me vengo a enterar que hacen unas contracciones más fuertes, que llevan a una catarata de intervenciones: desde la epidural, que pone a la mujer en una posición pasiva, acostada, con un cableado que mide las pulsaciones del bebe, y lleva rápidamente a dictaminar que se proceda a una cirugía mayor, como es la cesárea-que muchas veces es necesaria y hay vidas que se salvan, pero en otras circunstancias el trabajo de parto más fisiológico no requiere esa intervención. Entonces, a partir de que quedo embarazada la segunda vez, me empiezo a informar tempranamente y empiezo a participar de círculos de mujeres con doulas, a ver informaciones en las redes para entender cómo parimos-[y encontré] un grupo cerrado, con 5000 personas, en 2017. Me encontré transitando en estos círculos de mujeres, escuchando. En algunos se hacia también trabajo de movimiento corporal (yo siempre hice algún trabajo con el cuerpo). En esa gestación también empecé a hacer cerámica (que había hecho de chica), y me encontré con esa posibilidad. A partir de la lectura del libro de Casilda Rodrigañez Bustos-Pariremos con placer-, empiezo a trabajar el útero como horno, como útero-horno, primero con una forma más estilizada, con la silueta como un hornijo, un horno de corte. Después, investigando más, cuando surgió la posibilidad de hacer un proyecto de arte colaborativo con mujeres gestantes, me encontré con la cerámica pre-colombina. La que fue mi doula, me pregunta: "Porque no vas con la Natiri, que conoció una ceramista acá en el barrio, cerca de tu casa, que trabaja con cerámica de raíz ancestral?". Y ahí me enamoré. Yo venía de las tradiciones de las artes visuales, o del arte contemporáneo, trabajando con dibujo, instalaciones y objetos. Había trabajado con cerámica, pero no con esa técnica. Ahí me encontré y me cerró más, porque el trabajo era sobre el propio cuerpo.

Infância e pobreza
As crianças ao cuidado do cinema
O preconceito em relação à pobreza, e espec... more Infância e pobreza
As crianças ao cuidado do cinema
O preconceito em relação à pobreza, e especialmente em relação à pobreza infantil, construído com base em pesados estereótipos de classe, carrega uma série de imagens e representações negativas associadas. Demasiadas vezes associada à errância e à delinquência, a infância pobre é vista como uma ameaça à sociedade, e configura um objeto incômodo sobre o qual se tem dificuldade em olhar, porque dá visibilidade a um lado perturbador da nossa realidade social. O estado de exceção, que constitui o fundo sobre o qual têm lugar essas cenas da infância abandonada à sua sorte como vida nua, continua a ser das coisas mais difíceis de ver, de apreciar e considerar, na sua descarnada realidade. O presente trabalho propõe que nos detenhamos sobre o modo como a infância em estado de exceção foi representada pelo cinema, a partir de duas obras cinematográficas. Com Os Esquecidos, de Luis Buñuel (1950) e Os Incompreendidos, de François Truffaut (1959), tentaremos entender como a pobreza infantil nos é dada a ver, ao mesmo tempo que questionamos o papel do cinema no exercício da resistência contra o fenômeno da invisibilidade da pobreza, bem como o alcance e os limites da nossa reação às imagens que projeta.
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Do fim da extraterritorialidade à entrada de Portugal na CEE (1925-1986)
Portugal and Thailand
From the end of extraterritoriality to portuguese admission on CEE (1925-1986)
O presente trabalho pretende dar continuação à investigação desenvolvida no mestrado, onde estudámos as relações entre Portugal e a Tailândia entre 1820 e 1925. Tentando aprofundar os estudos já existentes, reparar as lacunas e as omissões, e alargar o alcance das questões levantadas, propusemo-nos abordar então as relações entre ambos os países, colocando o acento sobre o singular regime jurídico-político que permitiu a Portugal manter uma presença privilegiada na região, numa nação que – inclusive sofrendo a presença de potências estrangeiras – nunca chegaria a constituir uma colónia.
Assim, do que se trata no presente estudo é de deslocar (alargar) a atenção sobre o período imediatamente posterior, até a atualidade recente, procurando – a partir do levantamento dos documentos existentes – reconstruir as especificidades políticas, comerciais, económicas e culturais da presença portuguesa e luso-asiática na Tailândia durante o século XX.
A hipótese, que teve origem na exploração dos documentos do arquivo associado, diz respeito às relações entre Tailândia e Portugal e constata que as relações entre ambos os países estão marcadas, no século XX, por duas facetas: 1) a primeira, que vai desde a assinatura do tratado de extraterritorialidade ao início do século XX, e que se caracteriza por tratados bilaterais fortes, porém desaproveitados económica, política e geoestrategicamente por Portugal; 2) a segunda, marcada por um período de ausência de tratados relevantes, por uma pretensão de renovar os laços que apenas conduz à assinatura de pequenos tratados de pouca significação, e a uma série de encontros diplomáticos marcados por discursos grandiloquentes povoados de declarações de boas intenções, mas que não contribuem para um incremento nas relações entre os dois países, e cuja importância é basicamente a sua instrumentalização simbólica, por parte de ambos os estados.
A exploração da história contemporânea recente das relações entre a Tailândia e Portugal, em todo o caso, implica objetivos que se repartem segundo duas dimensões fundamentais: 1) a pesquisa do património documental e monumental comum, sobretudo a restituição de um arquivo primário rigoroso, inexistente até à data; e 2) a sua perspectivação histórica sobre os eixos da diplomacia, da política, da cultura e do comércio.
Por outro lado, essa análise tem por objetivo, menos a história geral das relações internacionais, que um trabalho sobre a história das relações bilaterais entre Portugal e Tailândia, muito embora na qual a consideração das relações internacionais jogue um papel importante. Nessa medida, a teoria das relações internacionais não domina nem sobredetermina a forma da investigação, mesmo se considerações teóricas sobre as relações internacionais possam ser pontualmente encontradas, respondendo a um objetivo explicativo concreto.
Acreditamos, no fundo, que a reconstrução do arquivo associado à história dos contatos e os tratados, as trocas e as negociações entre Portugal e Tailândia, isto é, a disponibilização desse material documental, organizado criticamente, assim como a sua contextualização crítica, poderá chegar a contribuir para o desenvolvimento de outras investigações relacionadas com a presença de Portugal no Sudeste Asiático.
Na primeira parte, sobre a política externa de Portugal entre 1890 e 1986, faremos a análise do contexto político português desde finais do séc. XIX e ao longo do século XX, apresentando as linhas fundamentais que marcaram a atuação dos diversos regimes políticos nacionais na concepção da sua política externa.
A segunda parte contextualiza a evolução política tailandesa, desde a assinatura dos tratados desiguais até finais do século XX, dando especial relevo: 1) ao modo como durante o processo político de consolidação de um estado democrático, se verificou a emergência de uma elite governativa de cariz militar, 2) ao modo como a Tailândia, logrando a saída da esfera de influência francesa e britânica em defesa da sua soberania nacional, acabando o país subordinado à política externa de Washington.
A terceira parte, baseada na sua maioria em documentos do Arquivo Histórico-Diplomático do MNE, refere-se aos contatos entre Portugal e a Tailândia durante a era dos tratados desiguais, pela análise dos tratados bilaterais estabelecidos durante esse período: o tratado de 1859, que estabeleceu o regime de extraterritorialidade português; o tratado de 1925 que o revogou; o tratado de 1938 que pôs fim ao direito de evocação português na Tailândia. Damos conta do processo de estabelecimento dos portugueses na Tailândia desde o princípio do século XVI, inserido no contexto das relações comerciais entre europeus e siameses, assim como do modo em que oscilaram estas relações e os tratados que as consagraram ao longo de diversas épocas. Este capítulo vai incidir não só sobre o processo que determinou o fim do regime de extraterritorialidade portuguesa na Tailândia, mas também na forma em que este processo ganhou forma à medida que ia sendo apresentado a todos os países que gozavam de direitos de jurisdição consular no reino. Por fim, a descrição do processo negocial do último tratado comercial luso-siamês, assinado em 1938, que erradicaria em definitivo o direito de evocação decorrente da extraterritorialidade, e todos os privilégios ocidentais detidos na Tailândia, fundando assim uma nova era siamesa de tratados em termos de equidade com as outras nações, que consagraria a posição internacional da Tailândia em bases renovadas.
A quarta parte, também ela baseada na correspondência diplomática entre o consulado em Banguecoque e o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, privilegia igualmente a imprensa nacional, para a análise dos contatos estabelecidos entre Portugal e a Tailândia durante o século XX, sob a forma de visitas de estado – primeiro por Chulalongkorn em 1897, e, mais tarde, por Bhumibol em 1960, bem como a deslocação de Sampaio à Tailândia, na qualidade de presidente da república, em 1999. O capítulo aborda igualmente os últimos tratados assinados entre ambos os países (1985, 1989 e 2001).
O desenvolvimento em quatro partes do presente trabalho é completado por uma série de apêndices que dizem respeito ao material documental associado à análise proposta, e apresenta mapas, cronologias, transcrições de documentos e tratados, assim como fotografias de arquivo.
João Canijo nos oferece uma perspectiva singular sobre esse passado reprimido, numa obra que visa a revisitação do regime salazarista. Em Fantasia Lusitana (2010), parte da recuperação de imagens oficiais, problematizando os sentidos possíveis dessas imagens, e questionando a ideia, passada pela propaganda, da neutralidade e paz portuguesas durante a segunda guerra mundial.
Ao expor essas imagens, fora do discurso da propaganda que as produzira, deslocadas do seu espaço de circulação e de funcionamento originais, Canijo pretende suspender o seu funcionamento ideológico. Pelo resgate de um ruído de fundo, oculto mas presente, que incomoda, abala o nosso olhar, preso à autoridade das representações consagradas. Então, abertas a novos significados, as imagens deixam de ser meros acessórios do mito salazarista, para passar a perturbá-lo, desvelando uma história permeada de traumas e de conflitos, de tensões sociais e de repressão, de policiamento das consciências e de administração da miséria.
Por outras palavras, Canijo revela os abusos do regime e coloca os relatos oficiais em questão, contrariando a historiografia hegemônica, que muitas vezes limita-se a perpetuar o tabu e a reproduzir o mito.
O presente trabalho pretende analisar criticamente a obra de Canijo, dando conta do alcance e dos limites da imagem cinematográfica para tomar partido, fazer sentido ou exercer a reserva crítica em relação aos problemas da historiografia recente.
La abertura democrática de estos países, aliada a la inquietud ante la necesidad de recuperar estas memorias imprimió al cine un cuño excepcional, dando origen a una vasta producción crítica. En América Latina, los documentales brasileros dedicados a la recuperación de la memoria de la Dictadura Militar buscan, a través del tratamiento de material de archivo, así como a través del recogimiento de testimonios orales, contornar la omisión proporcionada por el acceso condicionado de los documentos del régimen. Por otra parte, luego de la revolución que puso fin a la dictadura portuguesa del Estado Novo, el cine portugués ha trabajado los archivos visuales del régimen a la par de los testimonios de la resistencia, deconstruyendo las imágenes existentes del salazarismo.
Este trabajo pretende explorar el alcance y los límites de la imagen cinematográfica para tomar partido, hacer sentido o ejercer la reserva crítica, a través de estas relecturas de un pasado autoritario. Analizaremos tres películas que vuelven la mirada sobre las dictaduras de ambos países a partir de sus perspectivas singulares: la producción brasilera Diário de uma busca (2010), de Flavia Castro, y las producciones portuguesas Natal 71(1999), de Margarida Cardoso, y Fantasia lusitana (2010), de João Canijo. Las tres películas resaltan la necesidad de una crítica de la actualidad, que se vuelve sobre todo hacia el modo en que se incorporan en el presente algunas formas heredadas de ese pasado, que permanecen y se normalizan en medio de nuestro cotidiano democrático: la impunidad, lo innombrable, la obliteración de lo acontecido por la historiografía, la permanencia de los mitos conciliadores.
palavras-chave
: Extraterritorialidade; Sião; Imperialismo
Traducciones by Susana Guerra
Drafts by Susana Guerra
As crianças ao cuidado do cinema
O preconceito em relação à pobreza, e especialmente em relação à pobreza infantil, construído com base em pesados estereótipos de classe, carrega uma série de imagens e representações negativas associadas. Demasiadas vezes associada à errância e à delinquência, a infância pobre é vista como uma ameaça à sociedade, e configura um objeto incômodo sobre o qual se tem dificuldade em olhar, porque dá visibilidade a um lado perturbador da nossa realidade social. O estado de exceção, que constitui o fundo sobre o qual têm lugar essas cenas da infância abandonada à sua sorte como vida nua, continua a ser das coisas mais difíceis de ver, de apreciar e considerar, na sua descarnada realidade. O presente trabalho propõe que nos detenhamos sobre o modo como a infância em estado de exceção foi representada pelo cinema, a partir de duas obras cinematográficas. Com Os Esquecidos, de Luis Buñuel (1950) e Os Incompreendidos, de François Truffaut (1959), tentaremos entender como a pobreza infantil nos é dada a ver, ao mesmo tempo que questionamos o papel do cinema no exercício da resistência contra o fenômeno da invisibilidade da pobreza, bem como o alcance e os limites da nossa reação às imagens que projeta.
Do fim da extraterritorialidade à entrada de Portugal na CEE (1925-1986)
Portugal and Thailand
From the end of extraterritoriality to portuguese admission on CEE (1925-1986)
O presente trabalho pretende dar continuação à investigação desenvolvida no mestrado, onde estudámos as relações entre Portugal e a Tailândia entre 1820 e 1925. Tentando aprofundar os estudos já existentes, reparar as lacunas e as omissões, e alargar o alcance das questões levantadas, propusemo-nos abordar então as relações entre ambos os países, colocando o acento sobre o singular regime jurídico-político que permitiu a Portugal manter uma presença privilegiada na região, numa nação que – inclusive sofrendo a presença de potências estrangeiras – nunca chegaria a constituir uma colónia.
Assim, do que se trata no presente estudo é de deslocar (alargar) a atenção sobre o período imediatamente posterior, até a atualidade recente, procurando – a partir do levantamento dos documentos existentes – reconstruir as especificidades políticas, comerciais, económicas e culturais da presença portuguesa e luso-asiática na Tailândia durante o século XX.
A hipótese, que teve origem na exploração dos documentos do arquivo associado, diz respeito às relações entre Tailândia e Portugal e constata que as relações entre ambos os países estão marcadas, no século XX, por duas facetas: 1) a primeira, que vai desde a assinatura do tratado de extraterritorialidade ao início do século XX, e que se caracteriza por tratados bilaterais fortes, porém desaproveitados económica, política e geoestrategicamente por Portugal; 2) a segunda, marcada por um período de ausência de tratados relevantes, por uma pretensão de renovar os laços que apenas conduz à assinatura de pequenos tratados de pouca significação, e a uma série de encontros diplomáticos marcados por discursos grandiloquentes povoados de declarações de boas intenções, mas que não contribuem para um incremento nas relações entre os dois países, e cuja importância é basicamente a sua instrumentalização simbólica, por parte de ambos os estados.
A exploração da história contemporânea recente das relações entre a Tailândia e Portugal, em todo o caso, implica objetivos que se repartem segundo duas dimensões fundamentais: 1) a pesquisa do património documental e monumental comum, sobretudo a restituição de um arquivo primário rigoroso, inexistente até à data; e 2) a sua perspectivação histórica sobre os eixos da diplomacia, da política, da cultura e do comércio.
Por outro lado, essa análise tem por objetivo, menos a história geral das relações internacionais, que um trabalho sobre a história das relações bilaterais entre Portugal e Tailândia, muito embora na qual a consideração das relações internacionais jogue um papel importante. Nessa medida, a teoria das relações internacionais não domina nem sobredetermina a forma da investigação, mesmo se considerações teóricas sobre as relações internacionais possam ser pontualmente encontradas, respondendo a um objetivo explicativo concreto.
Acreditamos, no fundo, que a reconstrução do arquivo associado à história dos contatos e os tratados, as trocas e as negociações entre Portugal e Tailândia, isto é, a disponibilização desse material documental, organizado criticamente, assim como a sua contextualização crítica, poderá chegar a contribuir para o desenvolvimento de outras investigações relacionadas com a presença de Portugal no Sudeste Asiático.
Na primeira parte, sobre a política externa de Portugal entre 1890 e 1986, faremos a análise do contexto político português desde finais do séc. XIX e ao longo do século XX, apresentando as linhas fundamentais que marcaram a atuação dos diversos regimes políticos nacionais na concepção da sua política externa.
A segunda parte contextualiza a evolução política tailandesa, desde a assinatura dos tratados desiguais até finais do século XX, dando especial relevo: 1) ao modo como durante o processo político de consolidação de um estado democrático, se verificou a emergência de uma elite governativa de cariz militar, 2) ao modo como a Tailândia, logrando a saída da esfera de influência francesa e britânica em defesa da sua soberania nacional, acabando o país subordinado à política externa de Washington.
A terceira parte, baseada na sua maioria em documentos do Arquivo Histórico-Diplomático do MNE, refere-se aos contatos entre Portugal e a Tailândia durante a era dos tratados desiguais, pela análise dos tratados bilaterais estabelecidos durante esse período: o tratado de 1859, que estabeleceu o regime de extraterritorialidade português; o tratado de 1925 que o revogou; o tratado de 1938 que pôs fim ao direito de evocação português na Tailândia. Damos conta do processo de estabelecimento dos portugueses na Tailândia desde o princípio do século XVI, inserido no contexto das relações comerciais entre europeus e siameses, assim como do modo em que oscilaram estas relações e os tratados que as consagraram ao longo de diversas épocas. Este capítulo vai incidir não só sobre o processo que determinou o fim do regime de extraterritorialidade portuguesa na Tailândia, mas também na forma em que este processo ganhou forma à medida que ia sendo apresentado a todos os países que gozavam de direitos de jurisdição consular no reino. Por fim, a descrição do processo negocial do último tratado comercial luso-siamês, assinado em 1938, que erradicaria em definitivo o direito de evocação decorrente da extraterritorialidade, e todos os privilégios ocidentais detidos na Tailândia, fundando assim uma nova era siamesa de tratados em termos de equidade com as outras nações, que consagraria a posição internacional da Tailândia em bases renovadas.
A quarta parte, também ela baseada na correspondência diplomática entre o consulado em Banguecoque e o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, privilegia igualmente a imprensa nacional, para a análise dos contatos estabelecidos entre Portugal e a Tailândia durante o século XX, sob a forma de visitas de estado – primeiro por Chulalongkorn em 1897, e, mais tarde, por Bhumibol em 1960, bem como a deslocação de Sampaio à Tailândia, na qualidade de presidente da república, em 1999. O capítulo aborda igualmente os últimos tratados assinados entre ambos os países (1985, 1989 e 2001).
O desenvolvimento em quatro partes do presente trabalho é completado por uma série de apêndices que dizem respeito ao material documental associado à análise proposta, e apresenta mapas, cronologias, transcrições de documentos e tratados, assim como fotografias de arquivo.
João Canijo nos oferece uma perspectiva singular sobre esse passado reprimido, numa obra que visa a revisitação do regime salazarista. Em Fantasia Lusitana (2010), parte da recuperação de imagens oficiais, problematizando os sentidos possíveis dessas imagens, e questionando a ideia, passada pela propaganda, da neutralidade e paz portuguesas durante a segunda guerra mundial.
Ao expor essas imagens, fora do discurso da propaganda que as produzira, deslocadas do seu espaço de circulação e de funcionamento originais, Canijo pretende suspender o seu funcionamento ideológico. Pelo resgate de um ruído de fundo, oculto mas presente, que incomoda, abala o nosso olhar, preso à autoridade das representações consagradas. Então, abertas a novos significados, as imagens deixam de ser meros acessórios do mito salazarista, para passar a perturbá-lo, desvelando uma história permeada de traumas e de conflitos, de tensões sociais e de repressão, de policiamento das consciências e de administração da miséria.
Por outras palavras, Canijo revela os abusos do regime e coloca os relatos oficiais em questão, contrariando a historiografia hegemônica, que muitas vezes limita-se a perpetuar o tabu e a reproduzir o mito.
O presente trabalho pretende analisar criticamente a obra de Canijo, dando conta do alcance e dos limites da imagem cinematográfica para tomar partido, fazer sentido ou exercer a reserva crítica em relação aos problemas da historiografia recente.
La abertura democrática de estos países, aliada a la inquietud ante la necesidad de recuperar estas memorias imprimió al cine un cuño excepcional, dando origen a una vasta producción crítica. En América Latina, los documentales brasileros dedicados a la recuperación de la memoria de la Dictadura Militar buscan, a través del tratamiento de material de archivo, así como a través del recogimiento de testimonios orales, contornar la omisión proporcionada por el acceso condicionado de los documentos del régimen. Por otra parte, luego de la revolución que puso fin a la dictadura portuguesa del Estado Novo, el cine portugués ha trabajado los archivos visuales del régimen a la par de los testimonios de la resistencia, deconstruyendo las imágenes existentes del salazarismo.
Este trabajo pretende explorar el alcance y los límites de la imagen cinematográfica para tomar partido, hacer sentido o ejercer la reserva crítica, a través de estas relecturas de un pasado autoritario. Analizaremos tres películas que vuelven la mirada sobre las dictaduras de ambos países a partir de sus perspectivas singulares: la producción brasilera Diário de uma busca (2010), de Flavia Castro, y las producciones portuguesas Natal 71(1999), de Margarida Cardoso, y Fantasia lusitana (2010), de João Canijo. Las tres películas resaltan la necesidad de una crítica de la actualidad, que se vuelve sobre todo hacia el modo en que se incorporan en el presente algunas formas heredadas de ese pasado, que permanecen y se normalizan en medio de nuestro cotidiano democrático: la impunidad, lo innombrable, la obliteración de lo acontecido por la historiografía, la permanencia de los mitos conciliadores.
palavras-chave
: Extraterritorialidade; Sião; Imperialismo
As crianças ao cuidado do cinema
O preconceito em relação à pobreza, e especialmente em relação à pobreza infantil, construído com base em pesados estereótipos de classe, carrega uma série de imagens e representações negativas associadas. Demasiadas vezes associada à errância e à delinquência, a infância pobre é vista como uma ameaça à sociedade, e configura um objeto incômodo sobre o qual se tem dificuldade em olhar, porque dá visibilidade a um lado perturbador da nossa realidade social. O estado de exceção, que constitui o fundo sobre o qual têm lugar essas cenas da infância abandonada à sua sorte como vida nua, continua a ser das coisas mais difíceis de ver, de apreciar e considerar, na sua descarnada realidade. O presente trabalho propõe que nos detenhamos sobre o modo como a infância em estado de exceção foi representada pelo cinema, a partir de duas obras cinematográficas. Com Os Esquecidos, de Luis Buñuel (1950) e Os Incompreendidos, de François Truffaut (1959), tentaremos entender como a pobreza infantil nos é dada a ver, ao mesmo tempo que questionamos o papel do cinema no exercício da resistência contra o fenômeno da invisibilidade da pobreza, bem como o alcance e os limites da nossa reação às imagens que projeta.