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Monografia FINAL

A pesquisa analisa a representação cultural da hegemonia masculina na obra 'Niketche: Uma História de Poligamia' de Paulina Chiziane, destacando a literatura como uma prática social que reflete e atribui sentidos à realidade moçambicana. Através da obra, Chiziane critica a colonização e suas consequências na identidade cultural, enfatizando a poligamia como um traço de dominação masculina. O estudo busca compreender as interações culturais e sociais em Moçambique, promovendo um diálogo sobre a resistência cultural e a identidade feminina.

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Jeremias
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Monografia FINAL

A pesquisa analisa a representação cultural da hegemonia masculina na obra 'Niketche: Uma História de Poligamia' de Paulina Chiziane, destacando a literatura como uma prática social que reflete e atribui sentidos à realidade moçambicana. Através da obra, Chiziane critica a colonização e suas consequências na identidade cultural, enfatizando a poligamia como um traço de dominação masculina. O estudo busca compreender as interações culturais e sociais em Moçambique, promovendo um diálogo sobre a resistência cultural e a identidade feminina.

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0

Vânia Gilda Fernando Mandlate

A Poligamia como Traço Cultural de Hegemonia Masculina em Niketche: Uma


História de Poligamia, de Paulina Chiziane

Universidade Pedagógica de Maputo


Maputo
2025
1

Vânia Gilda Fernando Mandlate

A Poligamia como Traço Cultural de Hegemonia Masculina em Niketche: Uma


História de Poligamia, de Paulina Chiziane

Monografia apresentada na Faculdade de


Ciências de Linguagem, Comunicação e Artes,
da Universidade Pedagógica de Maputo,
Departamento de Português, para efeitos de
aquisição do grau académico de Licenciatura
em Ensino de Português, com habilitação em
Ensino de Línguas bantu, sob supervisão do
Prof. Doutor Simião Muhate.

Universidade Pedagógica de Maputo


Maputo
2025
2

Índic
Declaração de Honra........................................................................................................................4
Agradecimentos...............................................................................................................................5
Resumo …………………………………………………………………………………...…..…. 7
0. Introdução...................................................................................................................................8
1. Problematização........................................................................................................................10
2. Objectivos.................................................................................................................................11
3. Perguntas de Pesquisa...............................................................................................................11
4. Justificativa...............................................................................................................................12
5. Relevância do tema ………………………………………………………………………….. 13
CAPITULO I: REFERENCIAL TEÓRICO..................................................................................14
1.1. Literatura................................................................................................................................14
1.2. Literatura no Contexto Cultural..............................................................................................15
1.3 Cultura ………………………………………………………………………..…………….. 17
1.4. Cultura como Fonte de Inspiração da Autora da Obra Literária............................................18
1.5. Literatura na Comunicação Intercultural................................................................................18
1.6. A Literatura como Mecanismo de Resistência Cultural.........................................................20
1.7. Enquadramento Periodológico …………………………………………………..………… 22
CAPITULO II: METODOLOGIA................................................................................................22
2.1. Métodos da pesquisa...............................................................................................................23
2.2 Classificação da pesquisa quanto à abordagem.......................................................................23
2.3. Técnicas e Instrumentos de recolha de dados.........................................................................22
2.3.1. Pesquisa bibliográfica........................................................................................................24
2.3.2. Instrumentos de recolha de dados......................................................................................24
CAPITULO III: ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS.........................................................26
3.1. Descrição de Niketche..........................................................................................................26
3.2. Traços culturais....................................................................................................................30
3.3 Tratamento e valorização desigual entre homens e mulheres …………………....……….... 30
3.4 Poligamia como resultados de realidades sócio-culturais ……………………..……...……. 32
3.5 Superstição: curandeirismo e crenças espirituais ……………..………………………….… 36
3.6 Hegemonia do homem sobre a mulher …………………………..………………………… 37
3.7 A violência física como traço de hegemonia masculina e sinal de afecto ……….………… 38
3

3.8 A subalternidade da mulher …………………………….……………………………..…… 40


3.9 Superioridade e hegemonia masculina ……………………………………………….…….. 42
3.10 Expectativas sociais em relação às mulheres e sua posição na sociedade .…………..…… 43
3.11 Organização familiar ………………………………………………........……….…...…… 45
3.12. Ritos de iniciação ……...…………………………………………………………………. 46
3.13. Ritual de purificação: Kutcinga ……………………………………...………………..…. 48
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................50
Referências bibliográficas.............................................................................................................53
4

Declaração de Honra

Eu, Vânia Gilda Fernando Mandlate, declaro que esta Monografia é resultado da minha
investigação pessoal e das orientações do meu supervisor; e que o conteúdo é original e todas as
fontes consultadas estão devidamente mencionadas, no texto, nas notas e na bibliografia final.

Declaro ainda que este trabalho não foi apresentado em nenhuma outra instituição para a
obtenção de qualquer grau académico.

Maputo, _____de Outubro de 2025

_________________________________________________

(Vânia Gilda Fernando Mandlate)

Dedicatória
5

Dedico também aos meus pais, Fernando Valoi e Gilda Manjate, que, mesmo distante,
estiveram presentes em cada pensamento, em cada oração e em cada victória. Sua força, amor e
apoio incondicional foram essenciais para que eu pudesse seguir em frente, mesmo diante dos
obstáculos mais difíceis.

Agradecimentos
6

Agradeço a Deus, que sempre me iluminou. Em um momento de grande dificuldade, por


um instante, vi-me à beira da morte e a senti que foi a graça de Deus que me devolveu à vida.
Sua misericórdia e poder sustentaram-me, deram-me força e esperança para seguir em frente.
Graças a essa bênção divina, pude conquistar o meu curso e alcançar uma nova etapa na minha
vida. Sou imensamente grata a Deus por Sua acção em minha vida, por renovar as minhas forças
e por estar ao meu lado em todos os momentos.

Agradeço à minha família pelo apoio incondicional e incentivo durante toda a minha
trajectória no curso de licenciatura.

Ao meu marido, por toda a sua compreensão, paciência e apoio durante o meu curso. Sua
presença ao meu lado fez toda a diferença nos momentos mais difíceis e me deu forças para
seguir em frente. Sou muito grata por ter alguém tão especial ao meu lado, que acredita no meu
potencial e incentiva-me a alcançar os meus sonhos.

O meu agradecimento vai também ao meu supervisor, Prof. Doutor Simião Muhate, pela
paciência, apoio e orientação ao longo do meu percurso. Sua compreensão e dedicação fazem
toda a diferença no meu desenvolvimento.

A todos os que, directa ou indirectamente, contribuíram para a realização deste trabalho e


da minha formação.

Ao meu irmão, Amós Mandlaze, que, para além de encorajamento e motivação, me


ajudou em recursos financeiros, quando, em algum momento, achei que era o fim do mundo.

À minha mana, Genoveva da Marta, que, mesmo não presenciando o que estava a
acontecer, sempre acreditou em mim e achou força para ver o meu esforço, dando-me suporte e
inspiração para continuar estudando e lutando pelos meus sonhos.

À minha querida filha, que desde o início da minha jornada foi minha maior fonte de
força e coragem, pois, ainda no 1º ano da Faculdade, quando descobri a gravidez, meus passos
ficaram mais difíceis, mas, saber que dentro de mim havia uma vida que dependia de mim, me
deu a força para continuar. Seu amor e sua existência motivaram-me a seguir em frente,
buscando sempre o melhor para o nosso futuro. Obrigada, filha, por me ensinar sobre esperança,
fé e o verdadeiro significado de força.
7

Resumo

A presente pesquisa subordina-se ao tema é: “a representação cultural da hegemonia masculina


em Niketche: uma História de Poligamia, de Paulina Chiziane”, e tem como objectivo compreender a
literatura como uma prática social que apreende uma determinada realidade e lhe atribui
sentidos.. Através da obra Niketche, Chiziane demonstra que a figura do colonizador e as suas práticas
atravessam épocas e gerações, dominando não só bens materiais do território africano, mas também
moldando o ser moçambicano para outras vivências culturais e sociais de forma imposta e controladora.
Nesse sentido, encontra-se a importância da produção literária de Chiziane, não só por ser uma escritora
mulher e negra que enaltece a cultura moçambicana sob o olhar crítico da realidade de seu país, mas
também porque há, neste texto, o comprometimento de que o texto, no acto de contar histórias a partir da
oralidade da língua portuguesa usada em Moçambique demonstram resistir, no plano linguístico, a formas
de imposição cultural do colonizador. O romance considera que as perdas de identidade são agravadas a
partir do estabelecimento da colonização portuguesa. Para superar alguns dos problemas sociais, o texto
propõe um diálogo entre as diversas práticas sociais dos diferentes povos que compõem a população
moçambicana.

Palavras-chave: poligamia, cultura, traço cultural, hegemonia masculina.

0. Introdução
8

A diversidade de Moçambique não se faz somente em termos linguísticos, mas também


em termos culturais. Muito antes dos europeus chegarem, a costa moçambicana já era visitada
por povos orientais, além da presença de diversas etnias nativas que já habitavam a região.
Conviver com a diferença não é novidade em Moçambique. Contudo, o panorama literário de
Moçambique parece ter se desenvolvido de maneira mais atribulada.

A presente pesquisa, cujo tema é: “ a representação cultural da hegemonia masculina em


Niketche: uma História de Poligamia, de Paulina Chiziane”, tem como objecto de estudo o papel da
literatura na promoção da expressão da identidade e diversidade cultural, pois é através da escrita
que a expressão cultural se torna evidente no tempo e no espaço.

Durante a colonização europeia, muitos países do continente africano acabaram por


assimilar muitas tradições estrangeiras, adulterando e, até mesmo, erradicando os costumes
locais. Este processo de assimilação deu-se de diferentes formas, algumas das quais coercivas e
baseadas no desabono das instâncias culturais legítimas.

As consequências desta proposta de minimização da cultura autóctone configuraram-se


de diversas maneiras. Dentre elas, no entanto, as mais expressivas foram a anexação dos
territórios e recursos pelo colonizador e o não (re)conhecimento de muitos dos caracteres
identitários e culturais de seu povo, ao longo dos anos, pelas gerações posteriores; caracteres
estes que foram homogeneizados no estabelecimento da chamada modernidade e, em muitos
contextos, substituídos pelas ideologias estrangeiras.

É nessa perspectiva que esta pesquisa objectiva analisar, através de um estudo


bibliográfico e reflexivo, os traços culturais e sociais de Moçambique presentes na obra Niketche e
sua influência, que permeia o país, como, por exemplo, aos resquícios culturais herdados pelo
processo de colonização.

Esta pesquisa parte de dois pressupostos literários e antropológicos, dentre eles, o facto
de se considerar o homem como o único que se expressa por si mesmo dentro de um contexto, e
o facto de ele poder considerar-se igual aos demais, o que faz com que a sua identidade tenha um
substracto inicial com base na experiência elementar e comunicacional fundamental na
identidade e diversidade culturais.
9

Portanto, para a realização do presente estudo, baseamo-nos na pesquisa bibliográfica,


fazendo dela a hermenêutica da obra literária Niketche: Uma História de Poligamia, de Paulina
Chiziane, com enfoque nos traços culturais moçambicanos propostos por esta escritora na obra
literária em estudo.

A presente pesquisa analisa os traços culturais moçambicanas presentes na narrativa do


romance Niketche e é constituída de:
 Introdução, que trata da formulação do problema, a delimitação do tema e as motivações
para a emergência do problema levantado, assim como a justificativa para o mesmo.
Trata também da importância do tema nos vários campos/esferas. Apresenta, igualmente,
os objectivos que se pretende alcançar com a pesquisa, assim como as questões que a
pesquisa visa responder.
 O capítulo I constitui a “Revisão da Literatura”, onde se apresenta uma visão geral da
literatura relevante para a análise dos dados da pesquisa, assim como se destacam os
pontos fortes da área em estudo. Este capítulo aborda a parte teórica, que se debruça
sobre a literatura e o seu papel na expressão da identidade cultural de um povo.
 O capítulo II apresenta a Metodologia usada na realização da presente pesquisa, a sua
caracterização, o tipo de abordagem que levada a cabo e, por fim, a técnica usada para a
recolha dos dados.
 O capitulo III debruça-se sobre a análise e discussão dos dados, em conformidade com a
revisão literária levada a cabo nesta pesquisa. Com base na discussão dos resultados,
chega-se às conclusões que configuram a parte final da pesquisa.

1. Problematização
10

Durante séculos, o ocidente defendeu a ideia de que a África Negra não tinha história ou
cultura. Essa ideia baseou-se na crença de que essa parte do continente não tinha preservado as
memórias da sua história.

Ao reivindicar seus direitos como cidadãos da terra, os moçambicanos desencadearam


uma luta não apenas para a conquista da independência nacional, mas também para afirmação da
identidade cultural ofuscada pela introdução de costumes europeus. O que antes era puramente
cultural e interesse tradicional deu lugar à consciência nacional.

No contexto da produção literária colonial, o sujeito subalterno não tem história e


não pode falar, este está ainda mais profundamente na obscuridade. A identidade
moçambicana não é ‘permanente’, e, como qualquer outra identidade é
constantemente construída, redesenhada, ressignificada. A busca pela identidade
nunca pode ser concluída, porque ela se vai revelar cada vez mais inovadora,
especialmente na busca dos que sofreram a experiência da colonização e da
assimilação de uma cultura estranha. É nesse momento que acontece o questionamento
dos que foram colonizados e que estão tentando reconstruir suas identidades
‘reformuladas’ após o período da colonização (Spivak, 2010, p. 67).

A literatura dos países que foram colonizados tem uma dupla função na descolonização
das mentes aculturadas, porque os seus povos foram duplamente colonizados, pela ‘cultura’ e
pela “raça” e, por meio da literatura, eles podem lutar por seus direitos. A literatura pode, no
entanto, promover e expressar mais fielmente a situação de povos subalternos, colonizados,
marginalizados.

Na pretensão de destacar as tácticas de subversão elaboradas e vivenciadas, a literatura é


uma linguagem que reinventa, relê a realidade por meios próprios, um diálogo feito com a
História, que investiga e, sobretudo, resgata vivências, saberes e memórias.

Em Niketche, Paulina Chiziane elaborou uma leitura muito particular acerca do universo
feminino em relação ao masculino no contexto moçambicano pós-independência, dando, assim, a
oportunidade de averiguar os modos de viver e as relações afectivas que se constroem nessa
sociedade.

Desse modo, pode-se considerar que esta obra pode dialogar com os diversos
pensamentos e sentimentos. É interessante perceber que as articulações e as rearticulações feitas
11

pelas personagens, em Niketche, tencionam os saberes endógenos, bem como os costumes


aderidos de outras culturas. As culturas divergem e certas condições tornam-se semelhantes e se
repetem em resultado de contactos entre indivíduos de várias culturas. Diante destas constatações
foi levantado o seguinte problema:

Quais são os traços de representação cultural da hegemonia masculina em Niketche: Uma


História de Poligamia, de Paulina Chiziane?

2. Objectivos

A presente pesquisa tem como finalidade analisar os traços culturais moçambicanos propostos
por Paulina Chiziane em Niketche: Uma História de Poligamia, e é orientada pelos seguintes
objectivos, em função dos quais serão levantadas as perguntas de pesquisa.

2.1 Objectivo Geral

Compreender a literatura como uma prática social que apreende uma determinada
realidade e lhe atribui sentidos.

2.1 Específicos

 Identificar as representações sócio-culturais moçambicanos propostos por Paulina


Chiziane em Niketche;
 Explicar a poligamia como traço sócio-cultural de hegemonia masculina sobre a mulher.
 Caracterizar aspectos comuns e divergentes da poligamia entre os grupos étnicos
representados pelas personsagens da obra Niketche, de Paulina Chiziane.

3. Perguntas de Pesquisa

 Quais são os traços sócio-culturais de hegemonia masculina propostos por Paulina


Chiziane em Niketche?
 Que aspectos demonstram a hegemonia masculina sobre a mulher em Niketce, de Paulina
Chuziane?
 Que aspectos sócio-culturais comuns são retratados em Niketche, de Paulina Chiziane?
 Que aspectos sócio-culturais divergentes entre o Norte e o Sul de Moçambique são
retratados em Niketche, de Paulina Chiziane?
12

4. Justificativa
Durante as décadas de 1960 a 1980, surgiu uma nova geração de historiadores
comprometidos em expandir um conjunto de objectos, problemas e abordagens históricas. Essa
geração de historiadores passou a abordar temas como lutas simbólicas, estudo das crenças,
rituais, memórias e sensibilidades. Reconhecer a literatura como uma fonte histórica, além de se
inserir noutra forma ou meio de aprendizagem e representação da realidade, implica legitimar a
sua importância como um documento histórico capaz de permitir penetrar na realidade e
subjectividade dos indivíduos.

Para a compreensão das diversas culturas de um país, é necessário compreender que a


literatura desempenha um papel-chave nas vivências das sociedades, visto que descreve os
aspectos dessas culturas.

A partir da perspectiva da descolonização, a literatura pós-colonial caracteriza-se por


questões de libertação nacional, consciência de expressão cultural e tentativa de repensar
criticamente a civilização como era antes da chegada dos portugueses no país, buscando a
reafirmação dos valores sócio-culturais endógenos de Moçambique, a reconfiguração da
identidade perdida durante a fase de assimilação e o despertar para um novo horizonte, a
independência nacional, repensando e reformulando alguns dos contactos com a cultura imperial
anterior.

É nessa motivação que esta pesquisa visa objectivar-se na identificação das marcas sócio-
culturais na literatura moçambicana, concretamente em Niketche, de Paulina Chiziane.

Paulina Chiziane trouxe, para a literatura de Moçambique, uma controvérsia, uma


alteração, uma polêmica, ao discutir os aspectos culturais da sociedade.

A eleição da obra Niketche de Paulina Chiziane baseia-se no seu determinismo histórico


onde os indivíduos constroem as sociedades a partir das suas vivências e experiências enquanto
comprometidos também com as suas visões do mundo.

A leitura do livro Niketche, da moçambicana Paulina Chiziane, foi uma motivação para a
escolha deste tema, não pelo assunto da poligamia, que é nele predominante, mas pela sua
abordagem no mosaico cultural de Moçambique.
13

No decorrer da pesquisa, fezemos uma reflexão sobre as matrizes culturais


moçambicanas, representadas pelas várias personagens do romance, pois é isso que faz com que
a história contada pela escritora, além de ser uma denúncia das formas de dominação masculina
em Moçambique, seja também uma reflexão sobre os valores sócio-culturais, e o modo como tais
valores são representados numa sociedade que, a partir da colonização, vai perdendo o seu
contacto com as suas práticas endógenas.

5. Relevância do tema

Neste âmbito, o tema proposto é socialmente relevante na perspectiva de que o homem,


ao deparar-se com a literatura, se encontre diante de uma gama de possibilidades no
aprofundamento da sua identidade e nela podem ocorrer as transformações necessárias em
função do tempo possibilitado pela literatura, pois o carácter crítico posiciona-o em função de
uma dada realidade e na percepção de que o texto literário oferece, particularmente, ao sujeito
escolar, o encontro com a experiência imodificável, que faz com que a construção da identidade
seja baseada na reflexão da literatura que contextualiza a história, seja do povo, do leitor ou do
outro.

No âmbito académico, a pesquisa poderá proporcionar aos professores subsídios que


estimulem a reflexão, questionamentos e a crítica sobre assuntos normativos com vista a um viés
de ensino voltado à valorização das questões culturais abordadas em obras literárias como forma
de solidificar a promoção desta mesma cultura.

CAPITULO I: REFERENCIAL TEÓRICO

Neste capítulo, são apresentados os aspectos considerados fundamentais para uma melhor
análise e compreensão do tema, assim como modelo teórico que sustenta o estudo, pois segundo
14

Minayo et al. (1996, p. 26), “a definição teórica e conceptual é um momento crucial da


investigação científica, porque constitui a sua base de sustentação”. Nesse sentido, julgamos
pertinente dibruçarmo-nos sobre os conceitos: cultura, cultura como fonte de inspiração da
autora, literatura na comunicação intercultural e literatura como mecanismo de resistência
cultural.

1.1 Literatura
Tratando-se de um trabalho de estudo dsobre o texto litdrário, a obra de Paulina Chiziane,
sentimo-nos na obrigação de termos de abordar, ainda que de forma sumária, o conceito de
literatura.
Na perspectiva de Aguiar & Silva (1988, p. 2), literatura “deriva do radical littera – letra,
carácter alfabético –, que significa saber relativo arte de escrever e ler gramática, instrução,
erudição”. Acrescentando ainda que autores cristãos, como Tertuliano, Cassiano, S. Jerónimo,
definem literatura como sendo “um corpus de texto seculares e pagãos, contrapondo-se a
scripturas, lexema que designa um corpus de textos sagrados”. Aliado a este pensamento, Souza
apud Oliveira (2009, p. 9) afirma que:
a palavra literatura, no decorrer da história, teve dois significados
básicos: 1. Até o século XVIII, a palavra manteve seu sentido primitivo de sua
origem latina (o termo provém do latim litteratura, “arte de escrever, literatura”, a
partir da palavra latina littera, “letra”), significando conhecimento relativo às
técnicas de escrever e ler; cultura do homem letrado e instrução. 2. Da segunda
metade do século XVIII em diante, o vocábulo passa a significar o produto da
actividade do homem de letras; conjunto de obras escritas; estabelecendo-se as
bases de suas acepções modernas.
Tendo como base Oliveira, seria racional afirmar que o conceito de literatura não é
estático, pois varia com o tempo. Vários autores corroboram essa ideia, como é o caso de Aguiar
& Silva (1988, p. 4), ao referir que:
Na segunda metade do século XVIII, o lexema literatura apresenta uma
profunda evolução semântica em conexão com as transformações da cultura
europeia. Este século foi considerado século das luzes pois foi marcado por três
grandes momentos: antes do século XVIII; meados do século XVIII e
actualidade. E também foram esses grandes factores que influenciaram na
evolução da literatura.
15

Alguns estudiosos contribuíram nessa evolução: “Voltaire caracteriza a literatura como


uma forma particular do conhecimento, mas não como uma arte específica, privilegia o conceito
génio, com todas suas implicações positivas, pré-escola romântica no domínio da criatividade
artística, aos conceitos da literatura e literato, este destina-se a um estatuto de subalternidade em
relação a grandeza de génio e associa as ideias de saber criatividade crítica” (ibidem: 04-05).
Acrescentado ainda que,
Diderot afirma que literatura é uma arte e é também o conjunto das
manifestações dessa arte, isto é, um conjunto de textos que singularizam pela presença
de determinados valores estéticos, específico fenómeno estético, específica forma de
produção, de expressão e de comunicação artísticas. A partir do significado do corpus
em geral, de textos literários, o lexema passou a significar também o conjunto de
produção literária de um determinado país, transportando consigo implicações
filosófico-políticas de tal conceito de “literatura nacional” neste sentido cada país
possuiria uma literatura com caracteres próprios.
Eagleton (2001, p. 98), por sua vez, define literatura como “uma forma de escrita criativa
que envolve não apenas a produção, mas também a interpretação activa dos leitores. Ele destaca
a importância da linguagem e da narrativa na criação de significado”.

1.3 Literatura no Contexto Cultural

A Literatura é um dos meios de construção e de representação de uma nação ou de um


povo como comunidade e sociedade inclusiva, pelo que, para Mendonça (1988, p. 34), “a
emergência da literatura vai ser determinada pela política educacional do Estado”.

Olha-se para o colonialismo, para se falar da literatura moçambicana, pois a literatura


feita na época colonial tinha que seguir os cânones do próprio sistema colonial e a política
assimilacionista que pressupunha, basicamente, a ruptura com todos os valores referentes às
práticas e costumes endógenos, de onde provém a literatura oral e toda a expressão que esta
carrega.

Neste contexto, o debate em torno da literatura, coloca-nos numa dimensão analítica por
meio da qual põe os mecanismos de desenvolvimento estratégico das transmissões dos valores
culturais de cada sociedade. Esse carácter de semelhança é definido por Taylor (1997, p. 42)
16

como “as configurações humanas que proporcionam o fundamento, explícito ou implícito, de


nossos juízos, intuições ou reacções morais”, possibilitando-lhe a vida social e a comunicação.

O pensador segue esclarecendo que “a pessoa desprovida por inteiro de configurações


estaria fora de nosso espaço de interlocução, não teria uma posição no espaço. Julgaríamos isso
patológico” (Taylor, 1997, p. 49).

A construção da identidade é a construção do significado existencial da pessoa. Nenhum


homem vive sem nenhum fragmento de significado, aliás, esses fragmentos são definitivamente
insuficientes, a vida inviabiliza-se.

O vazio de identidade é de tal gravidade para a estrutura humana que, estar desorientado
no seu espaço moral acerca de questões do que é bom ou mau, pode fazer o homem “desembocar
numa perda de controle da própria posição no espaço físico” (Taylor, 1997, p. 44).

O homem é um ser que necessita de companhia para que, no encontro com o outro, tenha
seu horizonte de significados ampliados. O encontro é definido por Guardini (1958, p. 33) como
“o entrelaçamento de duas realidades que se enriquecem mutuamente, o ambiente natural de
formação do ser humano e ocorre quando um homem se apresenta perante uma coisa ou um ser
vivo e é ferido pela sua presença”.

Neste âmbito a literatura tem mostrado o seu desenvolvimento estratégico para a


incorporação de mecanismos de expressão da identidade no âmbito da relação intercultural
sediada através da leitura no momento em que as duas culturas se encontram, isto é, a cultura do
escritor e a cultura do leitor, que se fundem na interpretação do outro num contexto diferenciado.

Por conseguinte, a literatura deve ser entendida como uma arte que reflecte as
representações da cultura de um povo, baseados nos seus atributos genéricos. Todavia, é uma das
formas de manifestar a cultura no contexto da expressão escrita. Assim, encontramos uma
expressão inegável sobre a relação que existe entre a literatura e a cultura, unidas por meio da
língua, seu elemento hermenêutico.

1.3 Cultura
17

Para Miranda (2002, p. 205), “a cultura na língua latina, entre os romanos, tinha o sentido
de agricultura, que se referia à cultura de soja, cultura de arroz, etc.

Em ciências sociais, a cultura é definida como um conjunto de ideias e comportamentos,


símbolos de práticas sociais, aprendidos de geração em geração através da vida em sociedade
(seria, então, a herança social da humanidade)”.

A cultura é um conceito que está sempre em desenvolvimento, pois, com o passar do


tempo, ela é influenciada por novas maneiras de pensar inerentes ao desenvolvimento do ser
humano.

Cada país tem a sua própria cultura, que é influenciada por vários factores, por exemplo,
na cultura moçambicana, a marrabenta representa o património musical, o mapico e o nhau
representam a dança, a matapa e a galinha zambeziana representam algumas das gastronomias
moçambicanas.

Segundo Miranda (2002, p. 205):

Se reunirmos o sentido amplo e o sentido restrito, compreenderemos que a


cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que
criam a existência social, económica, política, religiosa, intelectual e artística. A
religião, a culinária, o vestuário, o mobiliário, as formas de habitação, os hábitos à
mesa, as cerimónias, o modo de relacionar-se com os mais velhos e os mais jovens,
com os animais e com a terra, os utensílios, as técnicas, as instituições sociais (como a
família) e políticas (como o Estado), os costumes diante da morte, a guerra, o trabalho,
as ciências, a Filosofia, as artes, os jogos, as festas, os tribunais, as relações amorosas,
as diferenças sexuais e étnicas, tudo isso constitui a Cultura como invenção da relação
com o outro (MIRANDA, 2002).

Tradicionalmente, a cultura é concebida como formas e estilos de vida, entretanto, ela é


baseada nas abordagens mais tendenciais para a sua formação como a base de construção de toda
a síntese sobre a identidade social.

A Concepção positivista da Cultura é tida como a oposição à natureza a partir de sua


exploração predatória e prática. Na concepção de Bhabha (2003, p. 67), “a cultura é o controle
18

científico da natureza”. Na visão de Malinowski, “a cultura é um conjunto funcional formado


pelas diferentes instituições de uma sociedade”.

Tylor (1997, p. 49) concebe a cultura como “um conjunto de conhecimentos, crenças,
arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como
membro de uma sociedade”.

Em nosso entender, a cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência


histórica das gerações anteriores, porque, literalmente, a construção das identidades com base
nos pressupostos da definição da cultura numa visão antropológica e estruturalista, a cultura é
entendida como o conjunto das relações sociais que servem de modelo estruturante de um
determinado modo de vida.

1.4 Cultura como Fonte de Inspiração da Autora

Moçambique é um país de grande diversidade cultural e, como a maioria dos países


africanos, não possui uma identidade específica, apresentando aspectos que o ligam a outros
países vizinhos ou mesmo a outros continentes.

Além da influência portuguesa, Moçambique está bastante ligado à Índia e ao Oriente


Médio. De referir que o país é dotado de ricos e extensos bens culturais que necessitam de um
maior controlo de sua circulação dentro e fora do país.

1.5 A Literatura na Comunicação Intercultural

Na obra literária, a língua exerce o papel de instrumento de comunicação entre os


indivíduos que acumula no seu carácter expressivo de representação cultural, no sentido que
engloba outros elementos da cultura, que são facilitados através da leitura.

A literatura é uma representação simbólica, repleta de mistérios e de dificuldades


de desvendamento. A literatura tem sido tratada como um universo de signos
agradáveis que auxiliam o ensino da língua materna. A acção cultural, o exercício
estético, desenvolvido no ensino de literatura moçambicana, ainda é muito precária,
chegando, quando muito, a “pré-textos” para se trabalhar a gramática na sala de aulas
(Chabal, 1994, p. 45).
19

Neste âmbito, compreende-se que a literatura é tratada como uma “reserva” de modelo do
tempo, onde o escritor, na qualidade de produtor da literatura, nada faz que representa o seu
mundo, os escritores não intervêm sem história, modelos de bem-dizer e de bem-pensar, pois são
caracterizados como detentores de fonte de inspiração, razão pela qual o leitor, a prior, apreende
num texto literário o contexto e uma sociedade.

Apesar de a literatura ser caracterizada pela subjectividade, como qualquer obra


de arte, é um produto socialmente instado para efeitos comunicativos, caminhos que se
abrem para a configuração de um real sentido estimulado pela experiência. Por isso
mesmo, necessita de um destinatário, um ser concreto, com planos vivenciais, com um
olhar produzido por sua própria situação contextual, além da sensibilidade provocada
por sua cultura, que se irá defrontar com essa obra, abrindo, assim, um caminho de
diversidades e diálogo que se manifesta com uma riqueza de ressonâncias, de forma
hermenêutica, para quem a obra de arte se constitui na interacção autor-texto-leitor,
Bhabha (2003, p. 35).

Na concepção de Cândido, (1976, p. 80), “a literatura deve ser entendida como um


sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vivem na medida em
que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. [...] a obra de arte só está acabada
no momento em que se repercute e actua, porque sociologicamente, a arte é um sistema
simbólico de comunicação inter-humana”.

Neste âmbito, a literatura é entendida como uma contextualização da sociedade,


outrossim, estas práticas são baseadas no desenvolvimento estratégico de comunicação
contextualizada sobre uma dada realidade e é neste sentido que a subjectividade busca
desenvolver estratégias de desenvolvimento colectivo, razão pela qual, a triplicidade é pontual,
através de seguintes elementos: autor, obra e público.

1.6 Literatura como Mecanismo de Resistência Cultural


20

Chabal (1994, p. 158) defende que “se faz necessário mostrar a importância que a
literatura mais consagrada tem na sociedade”, mas também acentuar que “certos tipos de
expressão social e cultural como a marrabenta, o rap e outras modalidades menos reconhecidas
se constituem como vozes de comunidades silenciadas no meio urbano”.

A obra de arte literária também manifesta conforme, ou desconforme, à época, a sua


insatisfação em relação às realidades impostas por grupos organizadores das informações na
sociedade (Rádio, Televisão e Jornais).

A literatura protesta contra os regimes autoritários e, principalmente, contra o


mundo das mercadorias que transforma os seres humanos em objectos de compra e
venda. A linguagem literária resiste ao estado de coisa em que vivemos, o qual não é
nada favorável à arte. Mas não se pode esquecer que a literatura não opera somente
como instrumento de intervenção social ou político. Também elabora um trabalho de
“resistência interna”, isto é, a própria linguagem literária é uma das formas de
resistência cultural na medida em que não se deixa interpretar de forma maleável. A
literatura é um dos modos de reinterpretar o mundo e reinventar as culturas através da
arte da linguagem (Chabal, 1994, p. 160).

Depreende-se a partir desta visão que apresentar a literatura como fenómeno de


resistência tanto social como literária e cultural exige, de certo modo, uma atenção às relações
sociais e culturais nelas presentes em tensão constante e, no contexto moçambicano, exige-se
uma prática contínua.

A cultura e a literatura são relevantes, por isso, acentua-se a necessidade de conhecer


melhor a função da arte literária nos mais diversos meios sociais.

1.7 Enquadramento histórico da obra Niketche

Como dizem Serrano e Waldman, (2007, p. 33), “todas as construções elaboradas sobre a
África nunca se distanciaram da ambição de dominá-la, nem de configurá-la como contraponto
de uma Europa que se arrogava um papel dominante”. E isso consegue-se distorcendo a
compreensão que se tem do outro.
21

Niketche: Uma História de Poligamia é um romance que apresenta uma proposta de


(re)construção de um Estado marcado pela experiência de séculos de dominação colonial, dez
anos de guerra pela independência (1964-1974) e mais dezesseis anos de guerra civil (1977-
1992). Eventos que marcaram e assolaram o país. No momento em que Chiziane escreve o
romance, a lembrança dos conflitos ainda é recente e as primeiras linhas do livro retomam as
memórias da guerra:

“Um estrondo ouve-se do lado de lá. Uma bomba. Mina anti-pessoal. Deve ser a guerra a
regressar outra vez. Penso em esconder-me. Em fugir” (Chiziane, 2004, p. 9).

Ao lembrar que o romance foi publicado pela primeira vez em 2002, apenas dez anos
após o fim oficial dos conflitos, constata-se que a memória das guerras ainda mobiliza
sentimentos de uma experiência recente. Dedicar as primeiras linhas do romance para lembrar
esse período apresenta-se como uma estratégia para inscrever a narrativa como uma crítica à
colonização e à instabilidade provocadas pelas disputas entre a metrópole e os povos de
Moçambique (no caso da guerra pela independência); além de lembrar as disputas políticas que,
como reflexo do contexto da Guerra Fria, impulsionaram as disputas entre grupos socialistas e
capitalistas durante a guerra civil. Entretanto, esses dois eventos representam apenas uma parte
da história moçambicana, marcada por mais de três séculos de colonização portuguesa.

De acordo com a contextualização acima acerca do período colonial e pós-colonial de


Moçambique, destacando os conflitos ocorridos, seria apropriado afirmar que Niketche pode ser
lido como um romance que busca produzir uma identidade moçambicana, reconhecendo e
relacionando toda a diversidade de povos que habitam o país.

Além disso, o romance também elabora uma crítica a algumas políticas instituídas pela
FRELIMO, partido que governa o país desde a independência, em 1975. Alguns elementos
ganham destaque no romance e reflectem os traços deixadas pelo período colonial e pelas
guerras pela independência e pós-independência: a legislação que impõe a monogamia e as
práticas associadas aos ritos de iniciação que as (os) jovens são submetidas (os) no início da
puberdade ocupam espaço de destaque no enredo da narrativa.
22

CAPITULO II: METODOLOGIA

De acordo com Minayo (1999), entende-se por metodologia "o caminho do pensamento e
a prática exercida na abordagem da realidade". Este capítulo é reservado ao quadro metodológico
da pesquisa, onde se fará a classificação da pesquisa, a apresentação dos métodos e
procedimentos técnicos que orientaram a recolha, a análise e o tratamento de dados no campo
empírico.

De acordo com Silva & Menezes (2001, p. 32), “nesta etapa define-se onde e como será
realizada a pesquisa, o tipo de pesquisa, a população (universo da pesquisa), a amostragem, os
instrumentos de colecta de dados e a forma como se pretende tabular e analisar os dados”.

Assim, na perspectiva de dar respostas sólidas para a pergunta de pesquisa do presente


estudo, foi feito o cruzamento de informações primárias (dados obtidos da análise da obra lida) e
informações secundárias (dados obtidos da revisão da literatura), e a mobilização de várias
teorias para analisar e interpretar os dados.

2.1 Métodos da pesquisa

Para que os objectivos preconizados ou traçados, numa actividade, sejam atingidos ou


alcançados é necessária a escolha de um caminho que permite a boa realização dessas
actividades, e esse caminho dá-se o nome de método.

Segundo Prodanov e Freitas (2013, p. 126), “método de pesquisa é a forma de pensar


empregada na pesquisa para se chegar à natureza de determinado problema, quer seja para
estudá-lo ou explicá-lo”. Esses métodos esclarecem os procedimentos lógicos que deverão ser
seguidos no processo de investigação científica dos factos da natureza e da sociedade.

São, pois, métodos desenvolvidos a partir de elevado grau de abstracção, que possibilitam
ao pesquisador decidir acerca do alcance de sua investigação, das regras de explicação dos factos
e da validade de suas generalizações Prodanov e Freitas (2013, p. 26).

Para a presente pesquisa, foram aplicados os métodos que se seguem para a concretização
dos objectivos.
23

2.2 Classificação da pesquisa quanto à abordagem

A pesquisa privilegiou a análise qualitativa. A abordagem qualitativa, segundo Prodanov


e Freitas (2013, p. 56), “consiste na interpretação dos fenómenos e a atribuição de significados
sem recorrer ao uso de métodos e técnicas estatísticas. O ambiente natural é a fonte directa para
colecta de dados e o pesquisador é o instrumento-chave”.

Na visão de Creswell (2008, p. 45), “este tipo de pesquisa fundamenta-se na discussão da


ligação e correlação de dados interpessoais, na comparticipação das situações dos informantes,
analisados a partir da significação que estes dão aos seus actos”.

A análise qualitativa é menos formal, pois, seus passos podem ser definidos de maneira
relativamente simples. “A análise qualitativa depende de muitos factores, como a natureza dos
dados coletados, a extensão da amostra, os instrumentos de pesquisa e os pressupostos teóricos
que nortearam a investigação” (Prodanov e Freitas, 2013, p. 113).

2.3 Técnicas e Instrumentos de recolha de dados

Chama-se recolha de dados à fase do método de pesquisa, cujo objectivo é obter


informações da realidade.

Nessa etapa, define-se onde e como será realizada a pesquisa. Serão definidos, a
população (universo da pesquisa), a amostragem, os instrumentos de recolha de dados e a forma
como se pretende colher e analisar seus dados. “É a fase da pesquisa em que se reúne os dados
através de técnicas específicas” (Prodanov e Freitas, 2013, p. 97).

“As técnicas são os procedimentos operacionais que servem de mediação prática para a
realização das pesquisas” (Severino, 2007, p. 124). Como tais podem ser utilizadas em pesquisas
diferentes epistemologias. Mas, obviamente, precisam de ser compatíveis com os métodos
adorados e com os paradigmas epistemológicos adotados.

Os instrumentos que possibilitam a recolha de dados permitem uma abordagem a partir


de diversas perspectivas, podendo ser utilizados também para se complementarem. Para essa
investigação será utilizada a pesquisa bibliográfica.
24

2.3.1 Pesquisa bibliográfica

O estudo privilegiou a abordagem bibliográfica, dada a natureza social e complexa do


problema. Segundo Gil (1999, p. 39), “este procedimento técnico serve para sustentar,
teoricamente, o estudo, recorrendo à consulta de livros de leitura corrente, livros de referência e
publicações periódicas”.

Segundo Marconi & Lakatos (2003, p. 73), “pesquisa bibliográfica abrange toda a
jornada publicada em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais,
revistas, livros, pesquisas, testes etc, até meios de comunicações orais: rádio, gravações em fita
magnética e audiovisuais: filmes e televisão. A sua finalidade é colocar o pesquisador em
contacto directo com o que já foi documentado sobre o tema”.

“A importância da pesquisa bibliográfica é de auxiliar, especificamente, na identificação,


análise e compreensão de dados considerados úteis para o desenvolvimento e argumentação do
estudo, mediante a consulta de livros chegar ao resultado da pesquisa, e vivenciá-lo,
compreendendo o indivíduo ou grupo de indivíduos em seu próprio meio” (Severino, 2010, p.
67).

Para a abordagem do tema da presente pesquisa, fez-se uma abordagem de análise


documental, a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por
meios escritos e electrónicos, como livros, artigos científicos, páginas de websites.

2.3.2 Instrumentos de recolha de dados

Os instrumentos são ferramentas utilizadas para obter os dados da amostra anteriormente


definida. Esses instrumentos devem estar alinhados aos objectivos e às abordagens da pesquisa
(Prodanov e Freitas, 2013, p. 128).

Guba e Lincoln (1981) definem a análise documental como sendo "um intenso e amplo
exame de diversos materiais, que não foram utilizados para nenhum trabalho de análise, ou que
podem ser reexaminados, buscando outras interpretações ou informações complementares, sendo
essa busca feita por meio de documentos".
25

Phillips (1974, p. 187) expõe sua visão ao considerar que documentos são "quaisquer
materiais escritos que possam ser usados como fonte de informação sobre o comportamento
humano".

A análise documental, no entendimento de Godoy (1995, p. 78), além de ser "um


procedimento de pesquisa com características específicas, com finalidades próprias, pode ser
também utilizada como técnica complementar, validando e aprofundando dados obtidos por meio
de outros procedimentos como, entrevistas, questionários e observação".

Devido à natureza desta pesquisa, para a abordagem do tema, fizemos uma análise
documental, a partir da leitura e análise de uma obra literária. Para tal, esta pesquisa teve como
fonte de recolha de dados a obra literária Niketche: Uma História de Poligamia, da escritora
moçambicana Paulina Chiziane, com o objectivo de compreender os enunciados e analisar os
traços culturais moçambicanas nela presentes. A linguagem, expressão verbal e enunciados serão
vistos como indicadores significativos, indispensáveis para a compreensão dos aspectos da
cultura moçambicana presentes na obra literária Niketche.
26

CAPITULO III: APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DO CORPUS

O presente capitulo debruça-se sobre a apresentação e análise dos resultados colectados


através do uso dos instrumentos de colecta de dados mencionados na metodologia. Debruça-se sobre
a discussão dos resultados da pesquisa em conformidade com a revisão da literatura e aos
objectivos específicos levados a cabo nessa pesquisa.

Com base na discussão dos resultados, foi possível tecer recomendações que visam uma
atitude diferente para colmatar o problema levantado nesta pesquisa.

3.1 Descrição de Niketche

Por meio de uma pesquisa em história, tratou-se de compreender a literatura como uma
prática social que apreende uma determinada realidade, elabora-a e atribui-lhe sentidos.

Com uma escrita que tem como circunstância a realidade social moçambicana, é essa a
que nós pretendemos aproximar. Certamente, tal direcção é simbólica, o título da obra indica
movimento, vida, emancipação individual e colectiva contidos na cultura moçambicana. Práticas
culturais endógenas, dança e literatura escrita estão conectadas por meio do estilo literário de
Paulina Chiziane.

Publicada em 2004, pela editora Caminho, Niketche: Uma História de Poligamia insere o
trabalho da escritora em um cenário editorial internacional visivelmente significativo. O livro em
questão, alinhado à estratégia de publicação, propiciou à escritora ocupar um lugar expressivo na
literatura moçambicana, bem como no debate de literaturas africanas de língua portuguesa.

Niketche: Uma História de Poligamia conta a história de Rami (Rosa Maria), uma mulher
nascida no Sul de Moçambique e casada com Tony (Comandante António Tomás), chefe de
polícia com quem constituiu uma família de cinco filhos ao longo de vinte anos de matrimónio.
Vivendo dentro de uma sociedade regida pelos preceitos da religião católica, Rami respeita a
posição de esposa na qual está imbuída, ou seja, realiza o papel de mulher, muitas vezes
submissa e oprimida dentro do casamento, relegando seus desejos em nome do marido.

A trama é desencadeada após Betinho, o filho mais novo do casal, quebrar um vidro de
um carro em um incidente corriqueiro. Rami tenta negociar com o dono do carro que a trata com
27

desdém, pois, para ele, esse tipo de negociação deve ser feito entre os homens e não entre um
homem e uma mulher.

Diante da impaciência do dono do carro, Rami vive um constrangimento que a leva para
um mar de reflexões e questionamentos fundamentais para a compreensão não só de si mesma,
ou da sua vida conjugal, mas também do conjunto da sociedade moçambicana.

Tal episódio foi responsável pelo despertar de Rami em relação à ausência de Tony no
quotidiano do casal. Entretanto, apesar dos sacrifícios da protagonista, Tony não se importa em
honrar os votos matrimoniais, traindo Rami com inúmeras mulheres, além de estar sempre
ausente no lar, o que gera a acção que motiva o romance: “Onde andas, meu Tony, que não te
vejo nunca? Onde andas, meu marido, para me protegeres, onde? Sou uma mulher de bem, uma
mulher casada. Uma revolta interior envenena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na
boca. Revolta. Impotência e desespero” (Chiziane, 2004, p. 12).

Em meio a um turbilhão de sentimentos e sensações, a protagonista de Niketche resolve


que trará o marido, que aparece em casa por rápidos momentos para tomar banho e trocar de
roupa, de volta para casa, reconstruindo então seu casamento. Ela sabe que ele formou família,
tem filhos e montou casas para as demais esposas. Assim, cansada de ser deixada de lado, a
narradora-protagonista parte em busca de seu marido. Para isso, Rami actua em três frentes:

a) A primeira é enfrentar pessoalmente as amantes de seu marido;


b) A segunda diz respeito a uma auto-análise, uma busca incessante para se descobrir
enquanto sujeito dentro dessa relação;
c) Por fim, não menos importante, a última frente, Rami dedica-se a olhar e apreender a sua
própria condição a partir da compreensão que se tem do lugar ocupado pelas mulheres na
sociedade moçambicana, da qual ela também faz parte.

Após brigar com algumas dessas mulheres, Rami começa uma jornada para descobrir o
que deve fazer para reconquistá-lo. Diante da possibilidade de sofrer com a falta de segurança
que a ausência de uma figura masculina expõe as mulheres desse contexto, ela apela para
diversas tácticas: frequenta igrejas cristãs; visita curandeiros e conselheiras amorosas; ouve a
28

experiência de diversas mulheres. Nesse percurso pela reconquista do marido, ela compreende
que é impossível apagar a existência das outras esposas e dos outros filhos de Tony.

Como alternativa, a personagem começa a pensar sobre a possibilidade de viver um


casamento poligâmico. “Após conhecer as outras esposas de Tony, a narradora muda sua
imagem sobre as outras esposas, passa a identificá-las como vítimas das regras a que as mulheres
estão submetidas na sociedade moçambicana, seu marido passa a ocupar o papel de
vilão/opressor” (Chiziane, 2004, p. 27).

Nesse cenário, a personagem vê a poligamia como uma possibilidade para manter seu
casamento e forma de garantir direitos para as demais esposas e filhos de Tony, já que a
poligamia é regida por um conjunto de normas socialmente compartilhadas por alguns grupos
étnicos do país. Além disso, Rami observa que a incorporação da monogamia é influenciada pela
colonização portuguesa, e que a imposição dessa norma desestabilizou a organização social que
havia no Sul de Moçambique.

Ao identificar os agentes desse processo histórico, Chiziane critica colonizadores e


políticos que incorporaram as normas dos colonizadores às leis do país.

Nunca ninguém me disse a origem da poligamia. Por que é que a igreja proibiu
estas práticas tão vitais para a harmonia de um lar? Por que é que os políticos da
geração da liberdade levantaram o punho e disseram abaixo os ritos de iniciação? É
algum crime ter uma escola de amor? Diziam eles que essas escolas tinham hábitos
retrógrados. E têm. Dizem que são conservadoras. E são. A igreja também é. Também
o são as universidades e todas as escolas formais. Em lugar de destruir as escolas de
amor, por que não reformá-las? O colonizado é cego. Destrói o seu, assimila o alheio,
sem enxergar o próprio umbigo. E agora? Na nossa terra há muito desgosto e muita
dor, as mulheres perdem os seus maridos por não conhecerem os truques de amor
(Chiziane, 2004, p. 45).

Diante de suas inquietações, Rami resolve fazer aulas de iniciação sexual, prática
endógena do Norte do Moçambique, com o objectivo de salvar seu casamento com Tony. O
título do livro, Niketche é sugerido a partir de uma das danças do Norte de Moçambique, extremo
29

oposto de onde mora Rami. Este é um ritual de amor e erotismo, a dança é desempenhada pelas
meninas durante as cerimónias de iniciação.

Com os ensinamentos, Rami insere-se nos segredos das tradições africanas,


estabelecendo diferenças entre o Norte (matrilinear) e o Sul (patrilinear) do país. Contudo, a
protagonista insiste em procurar os motivos da ausência de Tony, descobrindo que “o coração de
Tony é uma constelação de cinco pontos, um pentágono” (Chiziane, 2004, p. 60).

Rami, então, conhece todas as cinco esposas, estreitando os laços familiares com elas,
tornando-se o centro da família poligâmica. A protagonista incita as outras mulheres à
insatisfação por conta da conduta de Tony, estimulando-as à busca de independência. O ápice do
romance se configura com o desejo das “outras” esposas e filhos de serem apresentados para
toda a família de Tony, conforme o costume poligâmico.

Tony revolta-se e desaparece por um período, sendo dado como morto por atropelamento.
Rami é submetida a um ritual de purificação, sendo posteriormente desposada pelo irmão mais
velho de Tony, de quem concebe e dá à luz um filho. No desfecho, Tony retorna e pede perdão à
Rami.

A protagonista de Niketche apresenta-nos Moçambique com todas as discussões e


complexidades possíveis dentro dos debates que cabem nas relações de género e/ou nas relações
afectivas. Assim, ao deparar-se com Julieta, Luísa, Saly e Maua, Rami desenha um mapa
geográfico e sócio-cultural do país, propiciando-nos a viagem que levanta esta pesquisa.

Em meio às diversas práticas culturais de Moçambique, bem como as problemáticas


existentes através das imposições coloniais, que ao longo do tempo foram sendo, de facto,
incorporadas às culturas vigentes no pais, é que a literatura é um meio importante de
comunicação e mediação com o intuito de provocar uma reflexão que gere transformação social
ou, ao menos, a coloque em questão.

Entendendo a literatura, como um documento importante para o oficio do historiador,


Niketche: Uma História de Poligamia é a fonte que dá base a esta pesquisa, de forma que se
possam depreender questões sinuosas presentes na sociedade moçambicana e que resultam das
30

experiências oriundas das inúmeras práticas culturas endógenas, bem como da colonização e das
iniciativas pós-independência.

3.2 Traços culturais

A escritora faz da sua narrativa um meio para apresentar ao mundo, de forma inovadora,
temas e acontecimentos polémicos que fazem parte da cultura do seu país.

A partir da perspectiva de que a literatura se apresenta como uma forma eficaz de


compreender melhor o mundo, Paulina Chiziane eterniza em seu romance, a representação do
contexto cultural e social moçambicano marcado pela hegemonia do homem e submissão da
mulher.

A escrita permeia as suas próprias vivências, uma vez que Chiziane nasceu na região Sul
de Moçambique, local onde as tramas de Niketche são narradas e que se destaca pelo patriarcado
machismo e pelo silenciamento da mulher, trata-se de uma relação que remonta ao diálogo entre
ficção e realidade. Em vista disso, considerando que o intuito desta pesquisa é identificar, a partir
da visão do narrador e das personagens do romance Niketche, serão apresentados alguns traços
culturais e sociais de Moçambique que foram representados na obra.

3.3 Tratamento e valorização desigual entre homens e mulheres

O primeiro factor representado é o tratamento e valorização desigual entre homens e


mulheres, no qual o homem é superior e a mulher submissa, privada de muitas actividades. Ao
longo da narrativa, considerando os entrecruzamentos da monogamia (herança europeia) e a
poligamia (aspecto cultural local) como uma das temáticas centrais, observa-se a mulher
considerada objecto, sob posse integral do homem, como se pode observar no seguinte
fragmento apresentado pela personagem principal, Rami: “quer seja esposa ou amante, a mulher
é uma camisa que o homem usa e despe. É um lenço de papel, que se rasga e não se emenda. É
sapato que descola e acaba no lixo” (Chiziane, 2004, p. 54).
Tais aspectos ainda são apresentados como uma cultura de hegemonia do homem e
submissão da mulher, que transcende gerações, ou seja, práticas, vivências e silêncios passados
de geração em geração, de uma mulher para a outra, como exposto na narrativa:

Transmito às mulheres a cultura da resignação e do silêncio, tal como aprendi da


minha mãe. E a minha mãe aprendeu da sua mãe. Foi sempre assim desde tempos sem
31

memória. Como podia eu imaginar que estava a paralisar as asas das meninas à boca
de nascença, a vendar os seus olhos antes de conhecerem as cores da vida? (Chiziane,
2004, p. 255-256).

O silenciamento na trama também é representado pela crença das mulheres na submissão


ao homem sem que haja questionamentos diante de tal realidade e também pelo processo de
cristianização da cultura, na qual a Igreja, como sendo parte da cultura europeia colonizadora,
influência e propaga a visão de superioridade do homem. Dessa forma, o discurso religioso
pregado para Rami, e para as demais mulheres personagens do romance é de que o homem é uma
graça divina porque, “dêem graças ao Senhor que iluminou a vossa estrada, caso contrário seriam
mães solteiras como tantas que andam por este mundo fora. Homens são raros. Ter um marido é
sorte nos dias que correm” (Chiziane, 2004, p. 158).

Portanto, no percurso da narrativa, é afirmado que o homem possui direito a tudo, dentre
isso, matar, amar, chamar e possuir, e sobretudo, procurar em outro lugar o que na casa da
mulher legítima não há.

Através de Rami, Paulina questiona e/ou denuncia as mais importantes estruturas sociais,
tradicionais e culturais que moldam a condição da mulher em Moçambique. Mulheres que são
submetidas a uma formação na qual o seu corpo, assim como a sua psique, são moldados a partir
de ideias que possibilitam a permanência e continuidade do patriarcado, de tal modo que se
perdem de si e são construídas para ser do outro e para o outro. Rami reflecte:

Fecho os olhos e escalo o monte para dentro de mim. Procuro-me. Não me


encontro. Em cada canto do meu ser encontro apenas a imagem dele. Solto um suspiro
e só me sai o nome dele. Desço até ao âmago do seu coração e o que é que encontro?
Só ele. (...) como é que o Tony me despreza assim, se não tenho nada de errado em
mim? Obedecer, sempre obedeci. As suas vontades sempre fiz. Dele sempre cuidei.
Até as loucuras suportei (Chiziane, 2004, p. 14).

Rami, Julieta, Luísa, Saly e Maua demonstram, por diferentes aspectos, como cada uma
experimenta o que é ser mulher em uma sociedade cuja condição de tornar-se mulher é um
marcador que pressupõe submissão a algum homem. As explicações sócio-culturais e religiosas
para que as condições e lugares ocupados pelas mulheres na sociedade sejam inferiores às
32

condições e lugares ocupados por homens são diversas, antigas e estão espalhadas em muitas
sociedades que compõem a humanidade.

O percurso traçado pelas mulheres na narrativa Niketche revela como as imposições


coloniais foram incorporadas aos aspectos culturais do país. O debate diante das questões de
género e da hegemonia da figura masculina repercute a outras realidades e grupos sociais que
não se limitam somente ao continente africano, uma vez que a busca pela busca da igualdade
entre géneros transcende gerações, culturas e fronteiras. Beauvoir (1970, p. 85) contribui nessa
perspectiva quando afirma que:
Em verdade, as mulheres nunca opuseram valores femininos aos valores
masculinos; foram os homens, desejosos de manter as prerrogativas masculinas, que
inventaram essa divisão: entenderam criar um campo de domínio feminino reinado da
vida, da imanência, tão-somente para nele encerrar a mulher; mas é além de toda
especificação sexual que o existente procura sua justificação no movimento de sua
transcendência: a própria submissão da mulher é a prova disso. O que elas reivindicam
hoje é serem reconhecidas como existentes ao mesmo título que os homens e não de
sujeitar a existência à vida, o homem à sua animalidade.
Embora a igualdade e emancipação sejam vistas, por muitos, como um perigo e ameaça
diante dos interesses masculinos, compreende-se a igualdade, considerando as representações
presentes na narrativa, como uma forma de valorizar a figura feminina como um sujeito tão
capaz quanto o homem.

3.4 Poligamia como resultado de realidades sócio-culturais

Pode-se destacar a temática da poligamia como cultura local que, em algumas regiões,
sofreu apagamento devido à imposição da cultura do colonizador, realidade que também permite
a observação das diferenças culturais entre as regiões Sul e Norte de Moçambique, em
decorrência da intensidade e dos limites territoriais em que o processo de colonização se deu.

A respeito disso, é importante que se faça a diferenciação entre adultério e poligamia.


Segundo Francisco (2019, p. 65), “poligamia é uma prática cultural e comum para a sociedade de
Moçambique, na qual o homem possui a permissão social de fundar união conjugal com mais de
uma mulher, e essas terão os mesmos direitos assegurados por lei. Contudo, com a colonização
33

portuguesa, muitas das tradições extinguiram-se em determinadas regiões do país, assim como a
poligamia, dando espaço aos costumes europeus.

Não há uma condenação reiterada à poligamia. Nem na sua absolvição. Mas há um


debate sobre as suas causas mais remotas, suas origens, sem justificar, ou condenar.

No romance, a personagem Rami, ao descobrir as acções extraconjugais de seu marido,


apresenta a poligamia como forma de partilha e privilégio total ao homem e sinaliza que a
aceitação é necessária entre as mulheres, assim como destacado nos dois seguintes trechos:

 “desde cedo aprendi que homem é pão, é hóstia, fogueira no meio de fêmeas morrendo de
frio. Na minha aldeia, poligamia é o mesmo que partilhar recursos escassos, pois deixar
outras mulheres sem cobertura é crime que nem Deus perdoa” (Chiziane, 2004, p. 55);
 “poligamia é natureza, é destino, é nossa cultura, dizem. No país, há dez mulheres por
cada homem, a poligamia tem que continuar. A poligamia é necessária, as mulheres são
muitas” (Chiziane, 2004, p. 102).

É à medida que as personagens vão sendo apresentadas na narrativa que as culturas vão
aparecendo.

Julieta, do Sul, é a estudante iludida;


Luísa, da Zambézia, “província do Centro de Moçambique, de onde os homens migram e
não retornam, por isto, os que sobram são divididos entre as muitas mulheres” (Chiziane,
2004, p. 55);
Saly é maconde, outro povo do Norte, de Cabo Delgado. Há uma lenda que diz que o
povo maconde é descendente de uma escultura feminina que adquiriu vida (Idem);
Mauá Salue é macua, outro povo do Norte, de origem monogâmica, transformado em
poligâmico a partir da influência muçulmana.
Eva, a Doutora, estudada, directora de empresa, chefe de homens no trabalho, tem carro
próprio, uma mulher integrada ao urbano, a única que não depende financeiramente de
Tony.
34

Das mulheres de Tony, as duas ímpares são Rami, de formação ocidental, monogâmica,
criada para servir ao homem. E Eva, a mulata do Norte, no outro extremo, mulher independente,
mas amaldiçoada nas culturas moçambicanas, e abandonada pelo marido por ser estéril.

Julieta, Luiza, Saly e Mauá são de culturas que, de uma forma ou de outra, convivem com
a poligamia.

Assim, também, são as outras personagens da narrativa, a sogra e a mãe de Rami, as tias,
a Conselheira. São diversas faces culturais que desfilam diante do leitor de Niketche. Também
vão desfilando as grandes contradições.

E, dentro destas, Paulina descreve a lógica perversa da cultura machista hegemônica em


Moçambique. Hegemônica, principalmente porque é cultuada pela mulher, que cumpre um papel
fundamental em sua manutenção. É correcto afirmar que a poligamia é cultuada, venerada e
garantida pelos homens, mas é também respeitada, idolatrada, perpetuada e transmitida de
geração em geração pelas mulheres africanas.

Em Niketche, a sogra de Rami é a mais fervorosa defensora da poligamia, conforme se


pode ler:

A minha sogra (...) grita “não” à monogamia, esse sistema desumano que
marginaliza uma parte das mulheres, privilegiando outras, que dá tecto, amor e
pertença a umas crianças, rejeitando outras (...). Grita contra o novo costume de ter
uma esposa à luz e várias concubinas, com filhos escondidos. (...) O meu filho é um
rizoma. É bambu, (...) alastra-se, multiplica-se. O meu filho tem destino de rei, de
patriarca. (...) Por causa das vossas doutrinas as nossas famílias africanas não passam
de montanhas isoladas boiando nas nuvens (Chiziane, 2004, p, 123-4).

Nesse sentido, é visível a observação dos resquícios da colonização portuguesa em


Moçambique, os quais impõem novas perspectivas culturais e que contribuem para o
apagamento da cultura local e para conflitos de cunho social e económico, pois, como apontado
por Noa (2019, p. 32), “muitas mulheres e seus filhos, frutos dessas relações clandestinas,
permanecem à mercê de tal realidade e desprovidas de direitos básicos”. Esses aspectos culturais
35

estão directamente relacionados às diferenças entre as regiões Sul e Norte de Moçambique,


sendo que muitas dessas diferenças são decorrentes do processo de colonização do país.

A partir dos diálogos na narrativa, é possível notar a rivalidade das duas regiões,
principalmente no que diz respeito a vivências entre homens e mulheres, vistos como totalmente
contrários ao que acontece no Sul do país. Considerando que o Norte de Moçambique não possui
marcas tão evidentes da colonização, os aspectos culturais pertencentes ao país ainda são
cultuados e praticados, dentre eles, a poligamia. Dentre os vários discursos presentes no
romance, destaca-se o seguinte fragmento, que apresenta a mulher moçambicana considerando as
diferentes regiões:

As mulheres do Sul acham que as do Norte são umas frescas, umas falsas. As do
Norte acham que as do Sul são umas frouxas, umas frias. Em algumas regiões do
Norte, o homem diz: querido amigo, em honra da nossa amizade e para estreitar os
laços da nossa fraternidade, dorme com a minha mulher esta noite. No Sul, o homem
diz: a mulher é meu gado, minha fortuna. Deve ser pastada e conduzida com vara
curta. No Norte, as mulheres enfeitam-se como flores, embelezam-se, cuidam-se. No
Norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo. No Norte, as mulheres são leves e
voam. Dos acordes soltam sons mais doces e mais suaves que o canto dos pássaros.
No Sul, as mulheres vestem cores tristes, pesadas. Têm o rosto sempre zangado,
cansado, e falam aos gritos como quem briga, imitando os estrondos da trovoada.
Usam o lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha.
Vestem-se porque não podem andar nuas. Sem gosto. Sem jeito. Sem arte. O corpo
delas é reprodução apenas (Chiziane, 2004, p. 36).

Observa-se que tal ponto de vista é dado por Rami, personagem pertencente à cultura do
Sul do país e que apresenta as suas concepções diante dos costumes do Norte, os quais, para ela,
são utopias distantes. Isso deve-se ao facto de que a região de Rami se encontra em um processo
de resgate identitário e de reconhecimento individual e colectivo, uma vez que muitos dos
treaços culturais cultuados na região são impostos pela cultura europeia, que se distanciam dos
traços originais do país.

Desta forma, os próprios conflitos da personagem principal como, por exemplo, o


sentimento de inferioridade para com as mulheres do Norte e a as relações extra-conjugais
36

mantidas por seu marido tornam-se reflexo das consequências dessa imposição da cultura
estrangeira de forma autoritária.

3.5 Superstição: curandeirismo e crenças espirituais

Na terra do meu marido? Não, não sou de lá. Ele diz-me que não sou de lá, e se
os espíritos da sua família não me quiserem lá, pode expulsar-me de lá. O meu cordão
umbilical foi enterrado na terra onde nasci, mas a tradição também diz que não sou de
lá. Na terra do meu marido sou estrangeira (Chiziane, 2004, p. 90).

Naqueles dias, havia uma grande crença em curandeirismo e práticas espirituais. As


pessoas acreditavam que os espíritos dos antepassados podiam trazer bênçãos ou maldições, e
que os curandeiros eram capazes de invocar esses espíritos para ajudar em questões de saúde ou
protecção. A mãe de Tony, por exemplo, era uma curandeira respeitada em sua comunidade, e
muitos iam até ela em busca de ajuda. Uma das passagens que ilustra o traço cultural da crença
na superstição é quando Rami foi acusada de ter matado Tony com recurso a curandeirismo,
alegadamente para evitar o divórcio e ficar com os seus bens.

“— O feitiço é teu. Mataste-o para evitar o divórcio e ficares com os bens do falecido. Eu
digo que sim.

“ — Mataste o nosso irmão como um gato e temperaste- o com alho. Eu digo que sim.

— Fomos a um curandeiro, um curandeiro bom. Ele acusa-te. Diz que foste à busca da
vingança, sem saber que era morte que compravas. Eu digo que sim” (Chiziane, 2004, p.
212).

Uma outra passagem que ilustra a crença no curandeirismo é quando Rami, percebendo
que há muitas rivais, parte em busca de meios para reconquistar Tony, com conselheiras do
amor, feiticeiros e conselhos de mulheres mais velhas. Todavia, essas táticas mostram-se sem
eficácia, o que faz com que Rami comece a pensar na possibilidade de compartilhar o marido
com as amantes, fazendo com que a poligamia seja institucionalizada e respeitada conforme os
costumes em um dia simbólico: o aniversário de quarenta anos de Tony. Assim, sob pressão da
mãe, o patriarca da família é convencido a lobolar as quatro amantes, dando-lhes direitos
parecidos com os da primeira-esposa, Rami. Dessa forma, a narradora passa a ser a matriarca
37

encarregada das quatro amantes, subvertendo, aos poucos, cada uma delas, auxiliando-as a
buscar independência financeira.

3.6 Hegemonia do homem sobre a mulher

Em Niketche: Uma História de Poligamia, Chiziane retrata as dificuldades que a mulher


moçambicana encontra ao tentar conquistar seu espaço na sociedade e como ela procura
contornar os obstáculos encontrados em seu caminho.

Ela usa as próprias práticas tradicionais de Moçambique, que também não facilitam a
vida da mulher dentro da comunidade. A condição da mulher nota-se quando, por exemplo, ao
vivenciar uma dificuldade com a vizinhança, em função de uma travessura do filho, Rami se
ressente por estar sozinha e vai em busca de uma explicação para as ausências constantes do
marido. Descobre, assim, que Tony tem relacionamentos extra-conjungais com quatro mulheres:
Julieta, Luísa, Saly e Mauá Saulé, e passa a ter conhecimento da existência dos outros filhos
dele.

Para surpresa do leitor, a protagonista solidariza-se pela condição inferior em que essas
mulheres e seus filhos vivem e começa a conviver com elas até tornarem-se companheiras.

A visão da mulher como um ser naturalmente passivo ou apático é um grande equívoco.


Segundo Beauvoir (2016, p. 24), “a passividade que caracteriza essencialmente a mulher é um
traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de
um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela
sociedade”.

Um destaque importante é a cena de abertura do romance, pois é a partir dela que a


personagem começa a incomodar-se. O filho mais novo de Rami, ao brincar na rua, termina
danificando um carro que estava estacionado. Essa circunstância causa certo alvoroço nas
proximidades e a personagem principal é culpada pelo acontecido:

“Da janela do quarto, “oiço” comentários na rua. As palavras que escuto lançam-me no
desespero. Sinto as línguas de fogo caindo no interior dos meus ossos” (Chiziane, 2004, p. 11).
38

O ocorrido evidencia a solidão de Rami e a total dependência do marido: “Um marido em


casa é segurança, é protecção. Na presença de um marido, os ladrões afastam-se. Os homens
respeitam. As vizinhas não entram de qualquer maneira para pedir sal, açúcar, muito menos para
cortar na casaca de outra vizinha. Na presença de um marido, um lar é mais lar, tem conforto e
prestígio”. (Chiziane, 2004, p. 11).

Até aquele momento, ela acreditara que dependia de um homem para levar sua vida
adiante. Tal sentimento não se mostrava restrito apenas a Rami, já que as outras mulheres de
Tony também se comportavam de forma semelhante, como reflecte a protagonista:

“Precisa-se de um homem para dar dinheiro, para existir. Para dar um horizonte na vida a
milhões de mulheres que andam soltas pelo mundo. Para muitas de nós, o casamento é emprego,
mas sem salário” (Chiziane, 2004, p. 163).

Esse sentimento é cultivado desde a mais básica educação dada às meninas. Com isso, o
hábito da dependência relacionado à figura masculina persegue a mulher e torna-se difícil para
ela desvencilhar-se dele na sua fase adulta. Mais uma vez, será a filósofa francesa a esclarecer
esse ponto.

“(...) sem lhe dar a oportunidade de estudar, sem lhe mostrar a utilidade disso, não se dirá
a ela na idade adulta que escolheu ser incapaz e ignorante: assim é que é educada a mulher, sem
nunca lhe ensinarem a necessidade de assumir ela própria a sua existência; de bom grado ela
submete-se a contar com a protecção, o amor, o auxílio, a direcção de outrem” (Beauvoir, 2016,
p. 546-547).

3.7 A violência física como traço de hegemonia masculina e sinal de afecto

As compreensões de amor e violência também predominam na narrativa e contribuem


para reafirmar a submissão do homem para com a mulher.

Rami destaca, em muitos momentos, o amor sendo um sentimento exclusivo ao homem e,


para a mulher, algo inalcançável e indigno, e que a violência também é uma demonstração de
afecto. Frente a essas concepções distintas entre as possibilidades do homem e da mulher, alguns
fragmentos do romance afirmam a violência como um acto natural que perpassa gerações de
39

mulheres no contexto explicitado na obra. Em um dos diálogos de Tony para com a Rami, pode-
se observar a naturalização e a perpetuação da violência física às mulheres:

Nunca maltratei a Lu, bati nela algumas vezes, apenas para manifestar o meu
carinho. Também te bati algumas vezes, mas tu estás aí, não me abandonaste para
lugar nenhum. A minha mãe foi sempre espancada pelo meu pai, mas nunca
abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam
com um simples açoite. Tens razão, Tony, as mulheres de hoje já não têm juízo. Por
que não te casas com a minha avó? (Chiziane, 2004, p. 284).

A partir do fragmento apresentado, compreende-se a violência vista como uma forma de


demonstração legítima de carinho e não como uma forma de maus tratos. Dentre as falas
presentes na narrativa, entende-se o silenciamento das mulheres e a aceitação disso relacionados
aos aspectos culturais, em que a mulher não é vista como um ser activo que ama, sofre e sente
prazeres, mas como como um ser passivo, subalterno que está em posição de inferioridade em
relação ao homem. Essa concepção também contribui para a análise comparatista entre as
relações afectivas das regiões Norte e Sul e a concepção da mulher em cada região,
considerando, para isso, as diferentes marcas coloniais em cada território.

Observa-se que, na região norte, na qual a colonização se deu de forma mais amena, a
mulher é um ser de beleza e que dá luz ao mundo, já a mulher do Sul é alguém triste, sem beleza
e autocuidado, considerada ainda como um objecto de posse do homem, por isso, deve ser
submissa ao marido a ponto de aceitar a violência como forma de carinho e afeição.

Uma reflexão de Rami a respeito da temática de amor confirma essa perspectiva de


passividade e reitera a ideia da inferioridade feminina, na qual a mulher deve ter os mesmos
privilégios que o homem, sejam eles de cunho social, económico ou também em relações
afectivas, assim como explicitado no trecho:

“Amar e ser amado é coisa de homem. Para a mulher, o amor recebido dura apenas um
sopro, um flash de fotografia, simples pestanejar da vista. Para a mulher, amar é ser trocada
como um pano velho por uma outra mais nova e mais bela como eu fui” (CHIZIANE, 2004, p.
135).
40

Para a personagem, o amor e suas formas de representação não compõem as vivências de


uma mulher sulista, assim como outros factores que também ficam explícitos na narrativa e no
quotidiano das mulheres retratadas na obra.

3.8 A subalternidade da mulher

Rami, ao restituir a dignidade das companheiras consciencializa-as de que a poligamia


significa muito mais que partilhar deliberadamente o “seu” Tony.

Ao recuperar as práticas endógenas, “aprendendo” com os terapêuticos encontros de


trocas de experiências, elas descobrem a força da amizade, resgatando a capacidade de
acreditarem em si mesmas. Nessa comunidade imaginada e fraterna de mulheres, que espalhada
pelo mundo, sobrevive como massa disforme e invisível, essas companheiras enfrentam
semelhante condição de subalternidade dentro e fora das fronteiras de Moçambique. Por isso,
torna-se emblemática a pergunta ao espelho:

“Espelho meu, existe neste mundo mulher mais triste do que eu? Há. Há milhões em todo
o mundo” (Chiziane, 2004, p. 247).

Ao considerar-se esta discussão, parece estranho à sociedade monogâmica que uma


mulher venha dividir o seu marido com outras quatro companheiras como quem divide estórias.
Todavia, esta foi a atitude de Rami. Numa sociedade onde paira o abandono de mulheres e de
crianças, esta esposa toma pelo avesso as práticas endógenas seculares.

A exemplo disso, Rami, casada e “com aliança no dedo” segundo os preceitos coloniais
monogâmicos e católicos, compreende que seria uma atitude profundamente desumana condenar
os filhos e as demais esposas de Tony ao restante do contingente miserável do país. Nesta
sociedade em que abunda o “rearranjo” das estruturas coloniais em contacto com as práticas
endógenas herdadas, a poligamia passa a ser encarada como alternativa ao desamparo de
mulheres com histórico de vida marcado pela cultura de exclusão e tragédia da opressão colonial
que inclui, neste contexto, as consequências da guerra. A par disso, a “socialização” de Tony é
compreendida por Rami como necessária, numa sociedade onde os homens ocupam o “cimo do
monte”.
41

Para além disso, no âmbito privado do quotidiano das mulheres em Niketche, a opressão
do colonialismo parece ser a força aterradora pela qual a tradição encontra eco, impondo um
modo de ser subalterno em relação às mulheres. Lembra-se que há na questão da hegemonia
masculina que reina no país, as marcas históricas da colonização e da descolonização.

Historicamente, os acontecimentos da guerra contribuíram para a trágica realidade de


homens mutilados e mortos, para além de muitos emigrados. Para aqueles que sobreviveram a
estas injunções, contam ainda com a força da tradição que concebe aos homens uma supremacia
sobre uma prole de mulheres e filhos.

É, portanto, exemplar a fala da própria sogra de Rami nesta questão que expressa com
fidelidade a ordenação masculina em Moçambique:

“O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte. Ele é a estrela que
brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira. És o pilar desta família.
Todas estas mulheres giram à tua volta e te devem obediência. Ordena-as” (Chiziane, 2004, p.
65).

Todavia, ao invés de “ordená-las” como sugere a sogra, Rami faz com que as mulheres
narrem, emocionem e entristeçam-se com a experiência partilhada, reforçando, sobretudo, os
laços de aprendizagem como formação. Eis o relato:

Quando o movimento declina, as mulheres sentam-se em roda, comem a refeição


do dia e falam de amor. Um amor transformado em ódio, em raiva, em desespero, em
trauma. Fui violada sexualmente aos oito anos pelo meu padrasto, diz uma. O teu caso
foi melhor que o meu. Fui violada aos dez anos pelo meu verdadeiro pai. Ganhei
infecções e perdi o útero. Não tenho filhos, não posso ter [...]. Eu levava muita
pancada, diz outra. Ele trancava-me no quarto com meus filhos e dormia com outras
no quarto ao lado (Chiziane, 2004, p. 119).

“As formas puras de acção social são atitudes que os indivíduos tomam em sociedade e
que são norteadas pelo hábito, pela noção de sempre ter sido da maneira corrente. O indivíduo,
então, não questiona seu comportamento e o dos demais; aceita as regras e as segue como se
fossem, de facto, legítimas” (Silva e Silva, 2009, p. 405).
42

Sua legitimidade, portanto, era atestada dentro do escopo das convenções sociais que
definiam o que era certo e errado. A propósito desta questão, inclusive, vale destacar que muitos
destes princípios endógenos eram manipulados a fim de corroborar privilégios de grupos
específicos da comunidade, no caso, dos homens. É sabido, aliás, que não só em África, mas em
diferentes países, a questão da divisão de funções com base em questões de género é enviesada,
como se vê em Silva e Silva (2009, p. 408):

[...] a divisão de trabalhos e mesmo de papéis em uma sociedade, tendo como


parâmetros a dita raça e o sexo, são construções puramente artificiais (em
contraposição ao que seria chamado de “natural”) e regulares, definidas por um grupo
e estabelecidas pelo uso ao longo do tempo.

A consideração, portanto, práticas endógenas é uma conclusão a que se chega ao


contemplar as relações que regiam estas sociedades. No entanto, considerando estas práticas
inventadas, pode dizer-se que passaram por um processo de reinvenção quando da chegada do
elemento estrangeiro. Com a apresentação e a supervalorização da chamada modernidade
colonialista, as comunidades africanas tomaram/tomam como base de comportamento os
modelos europeus.

3.9 Superioridade e hegemonia masculina

Na sociedade moçambicana, Rami e as outras mulheres de Tony apresentam outros


aspectos que incitam um pensar crítico. A alimentação, por exemplo, possibilita a análise da
superioridade e valorização do homem, e também perpassa gerações e culturas.
Consequentemente, a mulher, nesse contexto, é a figura que serve e que atende os desejos do
homem, ractificando a sua submissão e devoção, por meio do acto de ajoelhar-se, costume que é
explícito nas reflexões de Rami:

“Aprendi a submissão das mulheres changanas. Ajoelhar para entregar um copo de água,
ajoelhar para convidar à mesa, ajoelhar para servir café, ajoelhar para receber um membro da
família, ajoelhar à simples chamada, ajoelhar, ajoelhar sempre” (Chiziane, 2004, p. 260).

Contudo, mesmo diante da submissão pelo acto de ajoelhar-se para servir o alimento,
outro ponto a ser destacado são os traços culturais que dizem respeito à própria alimentação. Na
43

cultura moçambicana, sobretudo a cultura sulista, as esposas necessitam reservar os melhores


alimentos para o consumo dos maridos, e essa prática é considerada uma regra a ser seguida,
pois, segundo os costumes, é uma forma de proteger a família, que depende inteiramente da
figura masculina. Sob esse tema, o seguinte trecho de Niketche é ilustrativo:

Quando servirem galinha, não se esqueçam das regras. Aos homens se servem os
melhores nacos: as coxas, o peito, a moela. Quando servirem carne de vaca, são para
ele os bifes, os ossos gordos com tutano. É preciso investir nele, tanto no amor como
na comida. O seu prato deve ser o mais cheio e o mais completo, para ganhar mais
força e produzir filhos de boa saúde, pois sem ele a família não existe (Chiziane, 2004,
p. 126).

Essa prática contribui para a compreensão da dimensão social e cultural do país e do


papel masculino nesse contexto. Contudo, a linha que permeia as práticas da cultura local das da
colonização portuguesa é muito tênue, o que instiga reflexões críticas a respeito desses
cruzamentos, como, por exemplo, diante da poligamia, que teve um significativo distanciamento
das práticas do Sul de Moçambique.

3.10 Expectativas sociais em relação às mulheres e sua posição na sociedade

Nos momentos iniciais da narrativa, mesmo em poucas páginas, Chiziane, além da


angústia, levanta mais uma questão importante a ser analisada e que percorre toda a história: a
solidão da mulher na sociedade patrilinear. A solidão aparece de várias maneiras e, no referido
momento, patenteia-se pela maternidade. Note-se que o episódio do filho de Rami faz observar
que as críticas dos vizinhos são direccionadas apenas para a mulher, para a mãe, porque “é ainda
a mulher que paga pela harmonia do lar. Parece natural ao homem que ela trate da casa, que
assegure sozinha o cuidado e a educação das crianças” (Beauvoir, 2016, p. 519).

Logo, percebe-se como as funções de criar e de educar uma criança não são destinadas ao
homem. Dessa forma, a mulher vê-se só, já que a responsabilidade e as tarefas relacionadas aos
filhos caem apenas sobre ela.

Bezerra (2017, p. 26) destaca que “a maternidade tem facilitado a possibilidade de a


mulher ser mantida no lugar a ela destinado quando da formação do patriarcado. Para que seja
44

eficiente, construções várias são feitas com relação aos cuidados com os filhos, que produzem
discursos que projectam, na sociedade, aquilo que ela espera de uma mãe: que ela seja a grande
detentora da capacidade de gerar, educar e formar seres humanos para o mundo. O filho é da
mãe! Mãe é mãe. Pai é outra história”.

O perfil das mulheres apresentadas em Niketche, de Pulina Chiziane, vai desenhando um


mapa sócio-cultural de Moçambique, dessa forma, somos encaminhados a acessar pontos
centrais que caracterizam a condição das mulheres neste país. Nesse contexto, “as relações
afectivas são como a ponta de uma estrutura replecta de contradições que definem desigualdades
de género ao mesmo tempo em que se tencionam as estruturas sociais. Uma grande valia em
sociedades nas quais casar e ter filhos é um dos principais condutores da formação e
consolidação dos indivíduos enquanto sujeitos sociais” (Ancholonu, 1995, p. 258).

A importância da maternidade na formação do sujeito social e, anterior à maternidade, a


constituição de uma família é primordial para se estabelecer na vida adulta em comunidade. A
descrição de Rami é fruto de uma reflexão que a protagonista desenvolve ao constatar que os
ensinamentos que recebeu durante a infância e adolescência a conduziram ao casamento e a uma
vida que não permitiu o auto-conhecimento, sem saber de si, olhar para si mesma. Aos quinze
anos de idade, Rami já era aluna de cursos de bordado, toalhas, tricô, cozinha, velas e rezas com
o objectivo de aprender a ser uma boa esposa cristã. Os ensinamentos de como obedecer ao
marido, maternidade e os cuidados com o lar fariam dela uma esposa perfeita.

“Desde cedo, às meninas era ensinada a obediência e preparação para o casamento. A


mãe de Tony não era diferente e, muitas vezes, lhe lembrava que ele precisava de encontrar uma
boa esposa para se estabelecer na vida. Ela dizia que as mulheres eram responsáveis por manter a
casa e criar os filhos, enquanto os homens eram responsáveis por prover o sustento da família”
(Chiziane, 2004, p. 23).

Na narrativa de Niketche, evidencia a preparação que a educação cultural dá para se estar


no mundo de forma que a principal accao ee se portar de uma maneira que faz com que a mulher
seja vista como perfeita e saiba servir e obedecer.
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3.11 Organização familiar

Dizem, Serrano e Waldman (2007, p. 129), que “para o africano típico, a sua identidade
está primeiramente centrada na família. É justamente a sua existência que permite compreender
por que a África tem suportado séculos de agressões contínuas. A família africana é uma
categoria muito ampla, incluindo parentes directos e parentes distantes, daí ser denominada
“família extensa”.

Nesta visão de família extensa incluem-se as esposas, todos os filhos e todas as ligações
que destes advêm. Vê-se que um conjunto de factores, combinados entre si, contribui de forma
decisiva para que a monogamia, mesmo sendo a forma de união matrimonial considerada legal
em Moçambique, não consiga suplantar a poligamia.

Pela leitura de Niketche, percebe-se que não se muda um costume milenar de um povo a
partir da compilação de leis escritas. No Norte do país, a poligamia, principalmente entre o povo
Macua, é costume adquirido dos mulçumanos, e no Sul, predominantemente católico, é comum
os negros ricos, mesmo casados, terem muitas mulheres. Tony é nada mais que uma personagem
simbólica, “esculpida” metaforicamente para representar esta realidade em Moçambique.

Segundo Altuna (2014, p. 86), “o Norte e Centro de Moçambique, as sociedades são


predominantemente matrilineares, enquanto que no Sul do país, há uma predominância de
sociedades patrilineares. Ao Norte, as mulheres desenvolvem, no mínimo, três funções diferentes
que caracterizam e definem a noção de continuidade do grupo: por meio da maternidade, do
domínio da agricultura e do título de guardiã do passado e do futuro, através da sua linhagem.
Esses elementos colocam mulheres advindas de sociedades matrilineares em condição de
alicerce, condição de valorização de seus atributos como parte essencial para a comunidade.

“Por outro lado, os grupos patrilineares são predominantemente pastores e entendem que
os animais foram dominados pelos homens, que são responsáveis pelo sustento familiar. Além
disso, é atribuída ao homem a responsabilidade pela continuidade da linhagem familiar. Esses
argumentos são fundamentais para os argumentos que inferiorizam a mulher e justificam a
subalternidade imposta social e culturalmente” (Altuna, 2014, p. 87).
46

Rami, então, conhece todas as cinco esposas, estreitando os laços familiares com e entre
elas, tornando-se o centro da família poligâmica. A protagonista incita as outras mulheres à
insatisfação por conta da conduta de Tony, estimulando-as à busca por independência. O ápice
do romance configura-se com o desejo das “outras” esposas e filhos de serem apresentados para
toda a família de Tony, conforme a tradição poligâmica.

3.12 Ritos de iniciação

“...Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (Chiziane, 2004, p. 37).

A frase é dita graças ao processo de se tornar mulher, empregado pela narradora-


protagonista. Diante de suas inquietações, Rami começa a ter aulas de iniciação sexual, costume
endógeno no Norte do Moçambique, com uma famosa conselheira amorosa, para que, assim,
consiga reconquistar seu marido.

Em algumas partes de Moçambique, é comum a prática dos chamados ritos de passagem:


para que um indivíduo possa continuar desenvolvendo espiritualmente e, assim, em comunhão
com a sociedade que o cerca, alguns rituais devem ser feitos em idades específicas, geralmente
correspondendo a uma passagem da infância para a vida adulta, da vida adulta para a velhice e,
por último, da velhice para a ancestralidade, quando o ser humano morre e retorna ao ciclo da
vida.

Rami, entretanto, foi criada conforme as leis da religião católica. Dessa forma, ela nunca
passou por quaisquer rituais que a ensinassem a se tornar uma mulher.

‒ São assim tão importantes esses ritos?

‒ Sem eles, és mais leve que o vento. És aquele que viaja para longe, sem viajar antes
para dentro de si próprio. Não te podes casar, ninguém te aceita. Se te aceita, logo
depois te abandona. Não podes participar num funeral, muito menos aproximar-te de
um cadáver porque não tens maturidade. Nem podes assistir a um parto. Não podes
tratar dos assuntos de um casamento. Porque és impura. Porque não és nada, eterna
criança (Chiziane, 2004, p. 40).
47

Com os ensinamentos, Rami insere-se nos segredos das tradições africanas,


estabelecendo diferenças entre o Norte (matrilinear) e o Sul (patrilinear) do país.

Em outro ponto da narrativa, quando as esposas de Tony partem em busca de uma nova
mulher para ele, a escolhida, apesar de ser muito jovem, já concluiu os ritos necessários para a
vida adulta:

‒ És ainda criança.

‒ Tenho dezoito anos. Donzelei aos quinze. Sei lavar roupa e lavar a loiça. Não sei
cozinhar bem, posso aprender, mas o mais importante: tenho escamas e tenho lulas.
Aprendi como se faz amor, nos ritos de iniciação.

‒ Donzelar?

‒ Sim. Donzelar é celebrar os ritos de iniciação (Chiziane, 2004, p. 322).

Fica evidente, desse modo, a deturpação do cânone europeu-ocidental efetuado por


Paulina em Niketche, ao demonstrar, na narrativa, outros sentidos do que é ser mulher nas
sociedades africanas.

É, portanto, neste interim que se observa um misto de costumes e tradições que


dinamicamente convivem. Esta convivência, no entanto, para o indivíduo assimilado, nem
sempre é clara, plena e salutar, já que muitas de suas implicações suscitam confusões sobre que
lugar estes sujeitos ocupam em seus contextos sócio-culturais, bem como que identidade,
individual e colectiva, eles possuem de facto. Sobretudo, esta combinação de hábitos conturbam
ainda a reflexão sobre a razão pela qual, hoje, esta tradição se reinventa, obscurecendo e
manipulando a verdade sobre o ser (ou não ser) deste indivíduos.

Uns dos momentos da narrativa, fica explícita o hiato sócio-cultural existente entre
homens e mulheres, bem como as determinações que regem as relações de género.

Conto-lhe as cenas de pancadaria em que andei envolvida, as feridas, os curativos


na clínica. Esperava uma reacção furiosa, um grito, uma bronca, uma sova. Mas ele vira-
se para o lado, cobre-se e tenta dormir outra vez. Incomodo:

- Traição é crime, Tony!


48

- Traição? Não me faça rir, ah, ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino.
Só as mulheres podem trair, os homens são livres, Rami (Chiziane, 2004, p. 29).

3.13 Ritual de purificação: Kutchinga

No entanto, com o passar do tempo e os eventuais sumiços do marido, Rami e as demais


esposas descobrem que Tony as trai com outra mulher, Eva. Com o desejo das “outras” esposas e
filhos de serem apresentados para toda a família de Tony, conforme a tradição poligâmica, Tony
revolta-se e desaparece por um período, sendo dado como morto por atropelamento. No entanto,
ele encontrava-se em Paris com outra mulher, Gaby.

Neste momento, Rami é submetida ao ritual do kutchinga durante oito dias após o
suposto falecimento de Tony.

“O kutchinga1 é um ritual de purificação cuja duração é de seis dias consecutivos de


relações sexuais, em que o homem passa boa parte da noite em casa da viúva: em que se tratando
de homem casado, este informa a sua esposa que vai purificar. Este ritual acontece com o
objectivo de purificar a viúva da energia do falecido marido para que não assombre a vida dela
por acreditar que ela pertence a ele (Chilambe, 2017, p. 10).

Chilambe (2017, p. 10) acrescenta que “outra explicação para este ritual é que assim, a
família do marido pode continuar a ter poder sobre a mulher, pois ela continua pertencente
àquele seio familiar, perpetuando-se, assim, a hegemonia masculina sobre a mulher. O
purificador é, por costume indógeno, um irmão do marido, neto ou primo.

Na impossibilidade desses, contrata-se um purificador profissional, que por seis noites


fará sexo com a viúva, com intuito de purificá-la. Nos dias de hoje, a purificação pode ser
realizada à base de ervas, sem que, para isso, as mulheres sejam submetidas a relações sexuais
com familiares do marido ou desconhecidos profissionais em purificação da viúva”.

1
Kutchinga é o nome Bantu dado ao ritual, em português o nome é levirato.
49

Minha pele se encharca de suor e medo. Meu coração bate de surpresa infinda.
Kutchinga!' Eu serei kutchingada por qualquer um. E todos aguçam os dentes para me
tchingar (Chiziane, 2004, p. 212).

Na narrativa de Niketche, o kutchinga acontece em meio a muita dor e sofrimento vividos


por Rami. Os dias após a “morte” de Tony foram marcados por muita violência física e
psicológica accionada pela família de Tony. Enquanto primeira esposa, Rami foi exposta a todos
os rituais cabíveis pelas chamadas práticas endógenas. A morte de um homem desconhecido
somada ao suposto desaparecimento de Tony levou a família de Tony a concluir que o morto em
questão se tratava de Tony.

Silêncio. Cobrem-me com um lençol branco e me arrastam para o quarto ao lado.


Consolo-me. Não sou única. Todas as viúvas desta família passaram por isto.

Sinto alguma coisa quente tocando no meu ombro. É uma mão. Um branco. Sinto
o cheiro de homem (...) Chegou a hora do kutchinga, a tradição entrega-me nos braços
do herdeiro. Por que não me disseram eles que era hoje? (Chiziane, 2004, p. 224)

A narradora-protagonista, então, passa por todo o processo de kutchinga. Na sequência,


Rami acaba sendo posteriormente desposada pelo irmão mais velho de Tony, que lhe concebe
um filho.

Ao retornar para o lar, Tony se depara com uma Rami humilhada e destruída e tenta a
todo o custo buscar o perdão dela e de suas outras esposas. Entretanto, com o passar do tempo,
todas abandonam a poligamia, incluindo a protagonista da história.

Dessa forma, Tony, que tinha todas as mulheres aos seus pés, acaba sozinho e
desamparado.

No desfecho, Tony retorna e pede perdão a Rami, que o desculpa.


50

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Niketche é um livro que mergulha nas raízes e na diversidade cultural de Moçambique,


no qual a escritora Paulina Chiziane retrata várias temáticas relevantes que demarcam
historicamente os traços da cultura moçambicana. Ela aborda temas como diversas práticas
culturais: rituais, crenças espirituais, música, dança e costumes locais, etc.

A obra também destaca questões sociais e de género, explorando a posição das mulheres
na sociedade moçambicana e a hegemonia masculina sobre a mulher, submissa.

Niketche, além de apresentar o contexto moçambicano a partir do olhar sensível das


personagens mulheres, apresenta os valores e práticas culturais de Moçambique, os impactos do
colonialismo português e como tais contextos influenciam na vida da sociedade moçambicana.

Por fim, reafirma-se que a representação escrita por Paulina Chiziane permite observar
não só a luta por direitos de igualdade das mulheres moçambicanas, como também potencializa o
olhar às vivências diárias de outras mulheres em outras culturas, que também buscam tornar-se
visíveis e ser valorizadas pela sociedade.

Diante desse fértil cenário, este estudo objectivou identificar, através de um método
bibliográfico, os traços da cultura moçambicana presentes na obra Niketche e as influências
culturais e sociais que permeiam o país, assim como os resquícios culturais herdados pelo
processo de colonização. Da análise feita, pode se concluir o seguinte:

No livro "Niketche", são abordados diversos costumes locais moçambicanos, como rituais
de casamento, cerimónias endógenas de iniciação, práticas endógenas de curandeirismo e
crenças espirituais. A autora também explora a dinâmica das relações familiares e comunitárias,
bem como as expectativas sociais em relação às mulheres e sua posição na sociedade face à
condição de subalternidade em relação à hegemonia masculina. Esses costumes locais são
retratados de maneira vivida e contextualizada ao longo da narrativa.

Referente aos aspectos culturais e sociais analisados, considerando os costumes locais e


os herdados pelo colonizador, é possível pontuar que tanto em algumas práticas endógenas
quanto em algumas leis a sociedade contribui para a subalternidade feminina, como, por
51

exemplo: o casamento poligâmico, que beneficia somente o homem; as práticas de alimentação e


submissão subentendidos pelo acto de ajoelhar-se; a superioridade masculina na sociedade; a
violência como forma de demonstração de afecto; os valores cristãos de que o homem é uma
graça divina; os diferentes costumes para com o nascimento de meninos e meninas, entre outras
práticas.

Paulina Chiziane explicita, de forma serena, as redes de cultura moçambicanas, denuncia


vigorosamente as formas públicas e subtis da opressão, dominação e exploração masculina sobre
as mulheres de seu país, mas vai além. O romance Niketche não é uma crítica a nenhum sistema
baseado em razões meramente políticas, mas na experiência das mulheres.

O romance, além de apresentar o contexto histórico e social de Moçambique a partir da


visão da narradora mulher, também possibilita uma potencial reflexão e análise diante do
relacionamento entre as demais mulheres presentes na trama. Essas iniciam o percurso de
autoconhecimento, união, empoderamento feminino, emancipação e busca identitária diante da
cultura machista existente, mas que, ao mesmo tempo, reflecte na realidade de um país que foi
colónia e que, mesmo após o processo de independência, ainda mantém práticas culturais e
sociais do seu colonizador.

Ela demonstra que a figura do colonizador e as suas práticas transcendem épocas e


gerações, dominando não só bens materiais do território africano, mas também moldando o ser
moçambicano para outras vivências culturais e sociais de forma imposta e controladora. O
colonialismo não só contribui para a intensificação de práticas opressoras, como também age
como um meio de moldar as formas de pensar, de agir, de viver e de existir enquanto nação e
sociedade, cujos moldes ainda podem permanecer vivos mesmo depois do processo de
independência. Os povos colonizados tiveram as suas culturas e formas de ser/estar no mundo
gradativamente transformadas tanto pelo contacto com a cultura árabe como pela cultura
europeia.

Nesse sentido, encontra-se a importância da produção literária de Chiziane, não só por ser
uma escritora mulher e negra que enaltece a cultura moçambicana sob o olhar crítico da
realidade de seu país, mas também porque há, neste texto, o comprometimento de que o texto, no
52

acto de contar histórias a partir da oralidade da língua portuguesa usada em Moçambique


demonstram resistir, no plano linguístico, a formas de imposição cultural do colonizador.

O romance considera que as perdas de identidade são agravadas a partir do


estabelecimento da colonização portuguesa. Para superar alguns dos problemas sociais, o texto
propõe um diálogo entre as diversas práticas sociais dos diferentes povos que compõem a
população moçambicana.
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