Monografia FINAL
Monografia FINAL
Índic
Declaração de Honra........................................................................................................................4
Agradecimentos...............................................................................................................................5
Resumo …………………………………………………………………………………...…..…. 7
0. Introdução...................................................................................................................................8
1. Problematização........................................................................................................................10
2. Objectivos.................................................................................................................................11
3. Perguntas de Pesquisa...............................................................................................................11
4. Justificativa...............................................................................................................................12
5. Relevância do tema ………………………………………………………………………….. 13
CAPITULO I: REFERENCIAL TEÓRICO..................................................................................14
1.1. Literatura................................................................................................................................14
1.2. Literatura no Contexto Cultural..............................................................................................15
1.3 Cultura ………………………………………………………………………..…………….. 17
1.4. Cultura como Fonte de Inspiração da Autora da Obra Literária............................................18
1.5. Literatura na Comunicação Intercultural................................................................................18
1.6. A Literatura como Mecanismo de Resistência Cultural.........................................................20
1.7. Enquadramento Periodológico …………………………………………………..………… 22
CAPITULO II: METODOLOGIA................................................................................................22
2.1. Métodos da pesquisa...............................................................................................................23
2.2 Classificação da pesquisa quanto à abordagem.......................................................................23
2.3. Técnicas e Instrumentos de recolha de dados.........................................................................22
2.3.1. Pesquisa bibliográfica........................................................................................................24
2.3.2. Instrumentos de recolha de dados......................................................................................24
CAPITULO III: ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS.........................................................26
3.1. Descrição de Niketche..........................................................................................................26
3.2. Traços culturais....................................................................................................................30
3.3 Tratamento e valorização desigual entre homens e mulheres …………………....……….... 30
3.4 Poligamia como resultados de realidades sócio-culturais ……………………..……...……. 32
3.5 Superstição: curandeirismo e crenças espirituais ……………..………………………….… 36
3.6 Hegemonia do homem sobre a mulher …………………………..………………………… 37
3.7 A violência física como traço de hegemonia masculina e sinal de afecto ……….………… 38
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Declaração de Honra
Eu, Vânia Gilda Fernando Mandlate, declaro que esta Monografia é resultado da minha
investigação pessoal e das orientações do meu supervisor; e que o conteúdo é original e todas as
fontes consultadas estão devidamente mencionadas, no texto, nas notas e na bibliografia final.
Declaro ainda que este trabalho não foi apresentado em nenhuma outra instituição para a
obtenção de qualquer grau académico.
_________________________________________________
Dedicatória
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Dedico também aos meus pais, Fernando Valoi e Gilda Manjate, que, mesmo distante,
estiveram presentes em cada pensamento, em cada oração e em cada victória. Sua força, amor e
apoio incondicional foram essenciais para que eu pudesse seguir em frente, mesmo diante dos
obstáculos mais difíceis.
Agradecimentos
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Agradeço à minha família pelo apoio incondicional e incentivo durante toda a minha
trajectória no curso de licenciatura.
Ao meu marido, por toda a sua compreensão, paciência e apoio durante o meu curso. Sua
presença ao meu lado fez toda a diferença nos momentos mais difíceis e me deu forças para
seguir em frente. Sou muito grata por ter alguém tão especial ao meu lado, que acredita no meu
potencial e incentiva-me a alcançar os meus sonhos.
O meu agradecimento vai também ao meu supervisor, Prof. Doutor Simião Muhate, pela
paciência, apoio e orientação ao longo do meu percurso. Sua compreensão e dedicação fazem
toda a diferença no meu desenvolvimento.
À minha mana, Genoveva da Marta, que, mesmo não presenciando o que estava a
acontecer, sempre acreditou em mim e achou força para ver o meu esforço, dando-me suporte e
inspiração para continuar estudando e lutando pelos meus sonhos.
À minha querida filha, que desde o início da minha jornada foi minha maior fonte de
força e coragem, pois, ainda no 1º ano da Faculdade, quando descobri a gravidez, meus passos
ficaram mais difíceis, mas, saber que dentro de mim havia uma vida que dependia de mim, me
deu a força para continuar. Seu amor e sua existência motivaram-me a seguir em frente,
buscando sempre o melhor para o nosso futuro. Obrigada, filha, por me ensinar sobre esperança,
fé e o verdadeiro significado de força.
7
Resumo
0. Introdução
8
Esta pesquisa parte de dois pressupostos literários e antropológicos, dentre eles, o facto
de se considerar o homem como o único que se expressa por si mesmo dentro de um contexto, e
o facto de ele poder considerar-se igual aos demais, o que faz com que a sua identidade tenha um
substracto inicial com base na experiência elementar e comunicacional fundamental na
identidade e diversidade culturais.
9
1. Problematização
10
Durante séculos, o ocidente defendeu a ideia de que a África Negra não tinha história ou
cultura. Essa ideia baseou-se na crença de que essa parte do continente não tinha preservado as
memórias da sua história.
A literatura dos países que foram colonizados tem uma dupla função na descolonização
das mentes aculturadas, porque os seus povos foram duplamente colonizados, pela ‘cultura’ e
pela “raça” e, por meio da literatura, eles podem lutar por seus direitos. A literatura pode, no
entanto, promover e expressar mais fielmente a situação de povos subalternos, colonizados,
marginalizados.
Em Niketche, Paulina Chiziane elaborou uma leitura muito particular acerca do universo
feminino em relação ao masculino no contexto moçambicano pós-independência, dando, assim, a
oportunidade de averiguar os modos de viver e as relações afectivas que se constroem nessa
sociedade.
Desse modo, pode-se considerar que esta obra pode dialogar com os diversos
pensamentos e sentimentos. É interessante perceber que as articulações e as rearticulações feitas
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2. Objectivos
A presente pesquisa tem como finalidade analisar os traços culturais moçambicanos propostos
por Paulina Chiziane em Niketche: Uma História de Poligamia, e é orientada pelos seguintes
objectivos, em função dos quais serão levantadas as perguntas de pesquisa.
Compreender a literatura como uma prática social que apreende uma determinada
realidade e lhe atribui sentidos.
2.1 Específicos
3. Perguntas de Pesquisa
4. Justificativa
Durante as décadas de 1960 a 1980, surgiu uma nova geração de historiadores
comprometidos em expandir um conjunto de objectos, problemas e abordagens históricas. Essa
geração de historiadores passou a abordar temas como lutas simbólicas, estudo das crenças,
rituais, memórias e sensibilidades. Reconhecer a literatura como uma fonte histórica, além de se
inserir noutra forma ou meio de aprendizagem e representação da realidade, implica legitimar a
sua importância como um documento histórico capaz de permitir penetrar na realidade e
subjectividade dos indivíduos.
É nessa motivação que esta pesquisa visa objectivar-se na identificação das marcas sócio-
culturais na literatura moçambicana, concretamente em Niketche, de Paulina Chiziane.
A leitura do livro Niketche, da moçambicana Paulina Chiziane, foi uma motivação para a
escolha deste tema, não pelo assunto da poligamia, que é nele predominante, mas pela sua
abordagem no mosaico cultural de Moçambique.
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5. Relevância do tema
Neste capítulo, são apresentados os aspectos considerados fundamentais para uma melhor
análise e compreensão do tema, assim como modelo teórico que sustenta o estudo, pois segundo
14
1.1 Literatura
Tratando-se de um trabalho de estudo dsobre o texto litdrário, a obra de Paulina Chiziane,
sentimo-nos na obrigação de termos de abordar, ainda que de forma sumária, o conceito de
literatura.
Na perspectiva de Aguiar & Silva (1988, p. 2), literatura “deriva do radical littera – letra,
carácter alfabético –, que significa saber relativo arte de escrever e ler gramática, instrução,
erudição”. Acrescentando ainda que autores cristãos, como Tertuliano, Cassiano, S. Jerónimo,
definem literatura como sendo “um corpus de texto seculares e pagãos, contrapondo-se a
scripturas, lexema que designa um corpus de textos sagrados”. Aliado a este pensamento, Souza
apud Oliveira (2009, p. 9) afirma que:
a palavra literatura, no decorrer da história, teve dois significados
básicos: 1. Até o século XVIII, a palavra manteve seu sentido primitivo de sua
origem latina (o termo provém do latim litteratura, “arte de escrever, literatura”, a
partir da palavra latina littera, “letra”), significando conhecimento relativo às
técnicas de escrever e ler; cultura do homem letrado e instrução. 2. Da segunda
metade do século XVIII em diante, o vocábulo passa a significar o produto da
actividade do homem de letras; conjunto de obras escritas; estabelecendo-se as
bases de suas acepções modernas.
Tendo como base Oliveira, seria racional afirmar que o conceito de literatura não é
estático, pois varia com o tempo. Vários autores corroboram essa ideia, como é o caso de Aguiar
& Silva (1988, p. 4), ao referir que:
Na segunda metade do século XVIII, o lexema literatura apresenta uma
profunda evolução semântica em conexão com as transformações da cultura
europeia. Este século foi considerado século das luzes pois foi marcado por três
grandes momentos: antes do século XVIII; meados do século XVIII e
actualidade. E também foram esses grandes factores que influenciaram na
evolução da literatura.
15
Neste contexto, o debate em torno da literatura, coloca-nos numa dimensão analítica por
meio da qual põe os mecanismos de desenvolvimento estratégico das transmissões dos valores
culturais de cada sociedade. Esse carácter de semelhança é definido por Taylor (1997, p. 42)
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O vazio de identidade é de tal gravidade para a estrutura humana que, estar desorientado
no seu espaço moral acerca de questões do que é bom ou mau, pode fazer o homem “desembocar
numa perda de controle da própria posição no espaço físico” (Taylor, 1997, p. 44).
O homem é um ser que necessita de companhia para que, no encontro com o outro, tenha
seu horizonte de significados ampliados. O encontro é definido por Guardini (1958, p. 33) como
“o entrelaçamento de duas realidades que se enriquecem mutuamente, o ambiente natural de
formação do ser humano e ocorre quando um homem se apresenta perante uma coisa ou um ser
vivo e é ferido pela sua presença”.
Por conseguinte, a literatura deve ser entendida como uma arte que reflecte as
representações da cultura de um povo, baseados nos seus atributos genéricos. Todavia, é uma das
formas de manifestar a cultura no contexto da expressão escrita. Assim, encontramos uma
expressão inegável sobre a relação que existe entre a literatura e a cultura, unidas por meio da
língua, seu elemento hermenêutico.
1.3 Cultura
17
Para Miranda (2002, p. 205), “a cultura na língua latina, entre os romanos, tinha o sentido
de agricultura, que se referia à cultura de soja, cultura de arroz, etc.
Cada país tem a sua própria cultura, que é influenciada por vários factores, por exemplo,
na cultura moçambicana, a marrabenta representa o património musical, o mapico e o nhau
representam a dança, a matapa e a galinha zambeziana representam algumas das gastronomias
moçambicanas.
Tylor (1997, p. 49) concebe a cultura como “um conjunto de conhecimentos, crenças,
arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como
membro de uma sociedade”.
Neste âmbito, compreende-se que a literatura é tratada como uma “reserva” de modelo do
tempo, onde o escritor, na qualidade de produtor da literatura, nada faz que representa o seu
mundo, os escritores não intervêm sem história, modelos de bem-dizer e de bem-pensar, pois são
caracterizados como detentores de fonte de inspiração, razão pela qual o leitor, a prior, apreende
num texto literário o contexto e uma sociedade.
Chabal (1994, p. 158) defende que “se faz necessário mostrar a importância que a
literatura mais consagrada tem na sociedade”, mas também acentuar que “certos tipos de
expressão social e cultural como a marrabenta, o rap e outras modalidades menos reconhecidas
se constituem como vozes de comunidades silenciadas no meio urbano”.
Como dizem Serrano e Waldman, (2007, p. 33), “todas as construções elaboradas sobre a
África nunca se distanciaram da ambição de dominá-la, nem de configurá-la como contraponto
de uma Europa que se arrogava um papel dominante”. E isso consegue-se distorcendo a
compreensão que se tem do outro.
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“Um estrondo ouve-se do lado de lá. Uma bomba. Mina anti-pessoal. Deve ser a guerra a
regressar outra vez. Penso em esconder-me. Em fugir” (Chiziane, 2004, p. 9).
Ao lembrar que o romance foi publicado pela primeira vez em 2002, apenas dez anos
após o fim oficial dos conflitos, constata-se que a memória das guerras ainda mobiliza
sentimentos de uma experiência recente. Dedicar as primeiras linhas do romance para lembrar
esse período apresenta-se como uma estratégia para inscrever a narrativa como uma crítica à
colonização e à instabilidade provocadas pelas disputas entre a metrópole e os povos de
Moçambique (no caso da guerra pela independência); além de lembrar as disputas políticas que,
como reflexo do contexto da Guerra Fria, impulsionaram as disputas entre grupos socialistas e
capitalistas durante a guerra civil. Entretanto, esses dois eventos representam apenas uma parte
da história moçambicana, marcada por mais de três séculos de colonização portuguesa.
Além disso, o romance também elabora uma crítica a algumas políticas instituídas pela
FRELIMO, partido que governa o país desde a independência, em 1975. Alguns elementos
ganham destaque no romance e reflectem os traços deixadas pelo período colonial e pelas
guerras pela independência e pós-independência: a legislação que impõe a monogamia e as
práticas associadas aos ritos de iniciação que as (os) jovens são submetidas (os) no início da
puberdade ocupam espaço de destaque no enredo da narrativa.
22
De acordo com Minayo (1999), entende-se por metodologia "o caminho do pensamento e
a prática exercida na abordagem da realidade". Este capítulo é reservado ao quadro metodológico
da pesquisa, onde se fará a classificação da pesquisa, a apresentação dos métodos e
procedimentos técnicos que orientaram a recolha, a análise e o tratamento de dados no campo
empírico.
De acordo com Silva & Menezes (2001, p. 32), “nesta etapa define-se onde e como será
realizada a pesquisa, o tipo de pesquisa, a população (universo da pesquisa), a amostragem, os
instrumentos de colecta de dados e a forma como se pretende tabular e analisar os dados”.
São, pois, métodos desenvolvidos a partir de elevado grau de abstracção, que possibilitam
ao pesquisador decidir acerca do alcance de sua investigação, das regras de explicação dos factos
e da validade de suas generalizações Prodanov e Freitas (2013, p. 26).
Para a presente pesquisa, foram aplicados os métodos que se seguem para a concretização
dos objectivos.
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A análise qualitativa é menos formal, pois, seus passos podem ser definidos de maneira
relativamente simples. “A análise qualitativa depende de muitos factores, como a natureza dos
dados coletados, a extensão da amostra, os instrumentos de pesquisa e os pressupostos teóricos
que nortearam a investigação” (Prodanov e Freitas, 2013, p. 113).
Nessa etapa, define-se onde e como será realizada a pesquisa. Serão definidos, a
população (universo da pesquisa), a amostragem, os instrumentos de recolha de dados e a forma
como se pretende colher e analisar seus dados. “É a fase da pesquisa em que se reúne os dados
através de técnicas específicas” (Prodanov e Freitas, 2013, p. 97).
“As técnicas são os procedimentos operacionais que servem de mediação prática para a
realização das pesquisas” (Severino, 2007, p. 124). Como tais podem ser utilizadas em pesquisas
diferentes epistemologias. Mas, obviamente, precisam de ser compatíveis com os métodos
adorados e com os paradigmas epistemológicos adotados.
Segundo Marconi & Lakatos (2003, p. 73), “pesquisa bibliográfica abrange toda a
jornada publicada em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais,
revistas, livros, pesquisas, testes etc, até meios de comunicações orais: rádio, gravações em fita
magnética e audiovisuais: filmes e televisão. A sua finalidade é colocar o pesquisador em
contacto directo com o que já foi documentado sobre o tema”.
Guba e Lincoln (1981) definem a análise documental como sendo "um intenso e amplo
exame de diversos materiais, que não foram utilizados para nenhum trabalho de análise, ou que
podem ser reexaminados, buscando outras interpretações ou informações complementares, sendo
essa busca feita por meio de documentos".
25
Phillips (1974, p. 187) expõe sua visão ao considerar que documentos são "quaisquer
materiais escritos que possam ser usados como fonte de informação sobre o comportamento
humano".
Devido à natureza desta pesquisa, para a abordagem do tema, fizemos uma análise
documental, a partir da leitura e análise de uma obra literária. Para tal, esta pesquisa teve como
fonte de recolha de dados a obra literária Niketche: Uma História de Poligamia, da escritora
moçambicana Paulina Chiziane, com o objectivo de compreender os enunciados e analisar os
traços culturais moçambicanas nela presentes. A linguagem, expressão verbal e enunciados serão
vistos como indicadores significativos, indispensáveis para a compreensão dos aspectos da
cultura moçambicana presentes na obra literária Niketche.
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Com base na discussão dos resultados, foi possível tecer recomendações que visam uma
atitude diferente para colmatar o problema levantado nesta pesquisa.
Por meio de uma pesquisa em história, tratou-se de compreender a literatura como uma
prática social que apreende uma determinada realidade, elabora-a e atribui-lhe sentidos.
Com uma escrita que tem como circunstância a realidade social moçambicana, é essa a
que nós pretendemos aproximar. Certamente, tal direcção é simbólica, o título da obra indica
movimento, vida, emancipação individual e colectiva contidos na cultura moçambicana. Práticas
culturais endógenas, dança e literatura escrita estão conectadas por meio do estilo literário de
Paulina Chiziane.
Publicada em 2004, pela editora Caminho, Niketche: Uma História de Poligamia insere o
trabalho da escritora em um cenário editorial internacional visivelmente significativo. O livro em
questão, alinhado à estratégia de publicação, propiciou à escritora ocupar um lugar expressivo na
literatura moçambicana, bem como no debate de literaturas africanas de língua portuguesa.
Niketche: Uma História de Poligamia conta a história de Rami (Rosa Maria), uma mulher
nascida no Sul de Moçambique e casada com Tony (Comandante António Tomás), chefe de
polícia com quem constituiu uma família de cinco filhos ao longo de vinte anos de matrimónio.
Vivendo dentro de uma sociedade regida pelos preceitos da religião católica, Rami respeita a
posição de esposa na qual está imbuída, ou seja, realiza o papel de mulher, muitas vezes
submissa e oprimida dentro do casamento, relegando seus desejos em nome do marido.
A trama é desencadeada após Betinho, o filho mais novo do casal, quebrar um vidro de
um carro em um incidente corriqueiro. Rami tenta negociar com o dono do carro que a trata com
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desdém, pois, para ele, esse tipo de negociação deve ser feito entre os homens e não entre um
homem e uma mulher.
Diante da impaciência do dono do carro, Rami vive um constrangimento que a leva para
um mar de reflexões e questionamentos fundamentais para a compreensão não só de si mesma,
ou da sua vida conjugal, mas também do conjunto da sociedade moçambicana.
Tal episódio foi responsável pelo despertar de Rami em relação à ausência de Tony no
quotidiano do casal. Entretanto, apesar dos sacrifícios da protagonista, Tony não se importa em
honrar os votos matrimoniais, traindo Rami com inúmeras mulheres, além de estar sempre
ausente no lar, o que gera a acção que motiva o romance: “Onde andas, meu Tony, que não te
vejo nunca? Onde andas, meu marido, para me protegeres, onde? Sou uma mulher de bem, uma
mulher casada. Uma revolta interior envenena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na
boca. Revolta. Impotência e desespero” (Chiziane, 2004, p. 12).
Após brigar com algumas dessas mulheres, Rami começa uma jornada para descobrir o
que deve fazer para reconquistá-lo. Diante da possibilidade de sofrer com a falta de segurança
que a ausência de uma figura masculina expõe as mulheres desse contexto, ela apela para
diversas tácticas: frequenta igrejas cristãs; visita curandeiros e conselheiras amorosas; ouve a
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experiência de diversas mulheres. Nesse percurso pela reconquista do marido, ela compreende
que é impossível apagar a existência das outras esposas e dos outros filhos de Tony.
Nesse cenário, a personagem vê a poligamia como uma possibilidade para manter seu
casamento e forma de garantir direitos para as demais esposas e filhos de Tony, já que a
poligamia é regida por um conjunto de normas socialmente compartilhadas por alguns grupos
étnicos do país. Além disso, Rami observa que a incorporação da monogamia é influenciada pela
colonização portuguesa, e que a imposição dessa norma desestabilizou a organização social que
havia no Sul de Moçambique.
Nunca ninguém me disse a origem da poligamia. Por que é que a igreja proibiu
estas práticas tão vitais para a harmonia de um lar? Por que é que os políticos da
geração da liberdade levantaram o punho e disseram abaixo os ritos de iniciação? É
algum crime ter uma escola de amor? Diziam eles que essas escolas tinham hábitos
retrógrados. E têm. Dizem que são conservadoras. E são. A igreja também é. Também
o são as universidades e todas as escolas formais. Em lugar de destruir as escolas de
amor, por que não reformá-las? O colonizado é cego. Destrói o seu, assimila o alheio,
sem enxergar o próprio umbigo. E agora? Na nossa terra há muito desgosto e muita
dor, as mulheres perdem os seus maridos por não conhecerem os truques de amor
(Chiziane, 2004, p. 45).
Diante de suas inquietações, Rami resolve fazer aulas de iniciação sexual, prática
endógena do Norte do Moçambique, com o objectivo de salvar seu casamento com Tony. O
título do livro, Niketche é sugerido a partir de uma das danças do Norte de Moçambique, extremo
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oposto de onde mora Rami. Este é um ritual de amor e erotismo, a dança é desempenhada pelas
meninas durante as cerimónias de iniciação.
Rami, então, conhece todas as cinco esposas, estreitando os laços familiares com elas,
tornando-se o centro da família poligâmica. A protagonista incita as outras mulheres à
insatisfação por conta da conduta de Tony, estimulando-as à busca de independência. O ápice do
romance se configura com o desejo das “outras” esposas e filhos de serem apresentados para
toda a família de Tony, conforme o costume poligâmico.
Tony revolta-se e desaparece por um período, sendo dado como morto por atropelamento.
Rami é submetida a um ritual de purificação, sendo posteriormente desposada pelo irmão mais
velho de Tony, de quem concebe e dá à luz um filho. No desfecho, Tony retorna e pede perdão à
Rami.
experiências oriundas das inúmeras práticas culturas endógenas, bem como da colonização e das
iniciativas pós-independência.
A escritora faz da sua narrativa um meio para apresentar ao mundo, de forma inovadora,
temas e acontecimentos polémicos que fazem parte da cultura do seu país.
A escrita permeia as suas próprias vivências, uma vez que Chiziane nasceu na região Sul
de Moçambique, local onde as tramas de Niketche são narradas e que se destaca pelo patriarcado
machismo e pelo silenciamento da mulher, trata-se de uma relação que remonta ao diálogo entre
ficção e realidade. Em vista disso, considerando que o intuito desta pesquisa é identificar, a partir
da visão do narrador e das personagens do romance Niketche, serão apresentados alguns traços
culturais e sociais de Moçambique que foram representados na obra.
memória. Como podia eu imaginar que estava a paralisar as asas das meninas à boca
de nascença, a vendar os seus olhos antes de conhecerem as cores da vida? (Chiziane,
2004, p. 255-256).
Portanto, no percurso da narrativa, é afirmado que o homem possui direito a tudo, dentre
isso, matar, amar, chamar e possuir, e sobretudo, procurar em outro lugar o que na casa da
mulher legítima não há.
Através de Rami, Paulina questiona e/ou denuncia as mais importantes estruturas sociais,
tradicionais e culturais que moldam a condição da mulher em Moçambique. Mulheres que são
submetidas a uma formação na qual o seu corpo, assim como a sua psique, são moldados a partir
de ideias que possibilitam a permanência e continuidade do patriarcado, de tal modo que se
perdem de si e são construídas para ser do outro e para o outro. Rami reflecte:
Rami, Julieta, Luísa, Saly e Maua demonstram, por diferentes aspectos, como cada uma
experimenta o que é ser mulher em uma sociedade cuja condição de tornar-se mulher é um
marcador que pressupõe submissão a algum homem. As explicações sócio-culturais e religiosas
para que as condições e lugares ocupados pelas mulheres na sociedade sejam inferiores às
32
condições e lugares ocupados por homens são diversas, antigas e estão espalhadas em muitas
sociedades que compõem a humanidade.
Pode-se destacar a temática da poligamia como cultura local que, em algumas regiões,
sofreu apagamento devido à imposição da cultura do colonizador, realidade que também permite
a observação das diferenças culturais entre as regiões Sul e Norte de Moçambique, em
decorrência da intensidade e dos limites territoriais em que o processo de colonização se deu.
portuguesa, muitas das tradições extinguiram-se em determinadas regiões do país, assim como a
poligamia, dando espaço aos costumes europeus.
“desde cedo aprendi que homem é pão, é hóstia, fogueira no meio de fêmeas morrendo de
frio. Na minha aldeia, poligamia é o mesmo que partilhar recursos escassos, pois deixar
outras mulheres sem cobertura é crime que nem Deus perdoa” (Chiziane, 2004, p. 55);
“poligamia é natureza, é destino, é nossa cultura, dizem. No país, há dez mulheres por
cada homem, a poligamia tem que continuar. A poligamia é necessária, as mulheres são
muitas” (Chiziane, 2004, p. 102).
É à medida que as personagens vão sendo apresentadas na narrativa que as culturas vão
aparecendo.
Das mulheres de Tony, as duas ímpares são Rami, de formação ocidental, monogâmica,
criada para servir ao homem. E Eva, a mulata do Norte, no outro extremo, mulher independente,
mas amaldiçoada nas culturas moçambicanas, e abandonada pelo marido por ser estéril.
Julieta, Luiza, Saly e Mauá são de culturas que, de uma forma ou de outra, convivem com
a poligamia.
Assim, também, são as outras personagens da narrativa, a sogra e a mãe de Rami, as tias,
a Conselheira. São diversas faces culturais que desfilam diante do leitor de Niketche. Também
vão desfilando as grandes contradições.
A minha sogra (...) grita “não” à monogamia, esse sistema desumano que
marginaliza uma parte das mulheres, privilegiando outras, que dá tecto, amor e
pertença a umas crianças, rejeitando outras (...). Grita contra o novo costume de ter
uma esposa à luz e várias concubinas, com filhos escondidos. (...) O meu filho é um
rizoma. É bambu, (...) alastra-se, multiplica-se. O meu filho tem destino de rei, de
patriarca. (...) Por causa das vossas doutrinas as nossas famílias africanas não passam
de montanhas isoladas boiando nas nuvens (Chiziane, 2004, p, 123-4).
A partir dos diálogos na narrativa, é possível notar a rivalidade das duas regiões,
principalmente no que diz respeito a vivências entre homens e mulheres, vistos como totalmente
contrários ao que acontece no Sul do país. Considerando que o Norte de Moçambique não possui
marcas tão evidentes da colonização, os aspectos culturais pertencentes ao país ainda são
cultuados e praticados, dentre eles, a poligamia. Dentre os vários discursos presentes no
romance, destaca-se o seguinte fragmento, que apresenta a mulher moçambicana considerando as
diferentes regiões:
As mulheres do Sul acham que as do Norte são umas frescas, umas falsas. As do
Norte acham que as do Sul são umas frouxas, umas frias. Em algumas regiões do
Norte, o homem diz: querido amigo, em honra da nossa amizade e para estreitar os
laços da nossa fraternidade, dorme com a minha mulher esta noite. No Sul, o homem
diz: a mulher é meu gado, minha fortuna. Deve ser pastada e conduzida com vara
curta. No Norte, as mulheres enfeitam-se como flores, embelezam-se, cuidam-se. No
Norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo. No Norte, as mulheres são leves e
voam. Dos acordes soltam sons mais doces e mais suaves que o canto dos pássaros.
No Sul, as mulheres vestem cores tristes, pesadas. Têm o rosto sempre zangado,
cansado, e falam aos gritos como quem briga, imitando os estrondos da trovoada.
Usam o lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha.
Vestem-se porque não podem andar nuas. Sem gosto. Sem jeito. Sem arte. O corpo
delas é reprodução apenas (Chiziane, 2004, p. 36).
Observa-se que tal ponto de vista é dado por Rami, personagem pertencente à cultura do
Sul do país e que apresenta as suas concepções diante dos costumes do Norte, os quais, para ela,
são utopias distantes. Isso deve-se ao facto de que a região de Rami se encontra em um processo
de resgate identitário e de reconhecimento individual e colectivo, uma vez que muitos dos
treaços culturais cultuados na região são impostos pela cultura europeia, que se distanciam dos
traços originais do país.
mantidas por seu marido tornam-se reflexo das consequências dessa imposição da cultura
estrangeira de forma autoritária.
Na terra do meu marido? Não, não sou de lá. Ele diz-me que não sou de lá, e se
os espíritos da sua família não me quiserem lá, pode expulsar-me de lá. O meu cordão
umbilical foi enterrado na terra onde nasci, mas a tradição também diz que não sou de
lá. Na terra do meu marido sou estrangeira (Chiziane, 2004, p. 90).
“— O feitiço é teu. Mataste-o para evitar o divórcio e ficares com os bens do falecido. Eu
digo que sim.
“ — Mataste o nosso irmão como um gato e temperaste- o com alho. Eu digo que sim.
— Fomos a um curandeiro, um curandeiro bom. Ele acusa-te. Diz que foste à busca da
vingança, sem saber que era morte que compravas. Eu digo que sim” (Chiziane, 2004, p.
212).
Uma outra passagem que ilustra a crença no curandeirismo é quando Rami, percebendo
que há muitas rivais, parte em busca de meios para reconquistar Tony, com conselheiras do
amor, feiticeiros e conselhos de mulheres mais velhas. Todavia, essas táticas mostram-se sem
eficácia, o que faz com que Rami comece a pensar na possibilidade de compartilhar o marido
com as amantes, fazendo com que a poligamia seja institucionalizada e respeitada conforme os
costumes em um dia simbólico: o aniversário de quarenta anos de Tony. Assim, sob pressão da
mãe, o patriarca da família é convencido a lobolar as quatro amantes, dando-lhes direitos
parecidos com os da primeira-esposa, Rami. Dessa forma, a narradora passa a ser a matriarca
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encarregada das quatro amantes, subvertendo, aos poucos, cada uma delas, auxiliando-as a
buscar independência financeira.
Ela usa as próprias práticas tradicionais de Moçambique, que também não facilitam a
vida da mulher dentro da comunidade. A condição da mulher nota-se quando, por exemplo, ao
vivenciar uma dificuldade com a vizinhança, em função de uma travessura do filho, Rami se
ressente por estar sozinha e vai em busca de uma explicação para as ausências constantes do
marido. Descobre, assim, que Tony tem relacionamentos extra-conjungais com quatro mulheres:
Julieta, Luísa, Saly e Mauá Saulé, e passa a ter conhecimento da existência dos outros filhos
dele.
Para surpresa do leitor, a protagonista solidariza-se pela condição inferior em que essas
mulheres e seus filhos vivem e começa a conviver com elas até tornarem-se companheiras.
“Da janela do quarto, “oiço” comentários na rua. As palavras que escuto lançam-me no
desespero. Sinto as línguas de fogo caindo no interior dos meus ossos” (Chiziane, 2004, p. 11).
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Até aquele momento, ela acreditara que dependia de um homem para levar sua vida
adiante. Tal sentimento não se mostrava restrito apenas a Rami, já que as outras mulheres de
Tony também se comportavam de forma semelhante, como reflecte a protagonista:
“Precisa-se de um homem para dar dinheiro, para existir. Para dar um horizonte na vida a
milhões de mulheres que andam soltas pelo mundo. Para muitas de nós, o casamento é emprego,
mas sem salário” (Chiziane, 2004, p. 163).
Esse sentimento é cultivado desde a mais básica educação dada às meninas. Com isso, o
hábito da dependência relacionado à figura masculina persegue a mulher e torna-se difícil para
ela desvencilhar-se dele na sua fase adulta. Mais uma vez, será a filósofa francesa a esclarecer
esse ponto.
“(...) sem lhe dar a oportunidade de estudar, sem lhe mostrar a utilidade disso, não se dirá
a ela na idade adulta que escolheu ser incapaz e ignorante: assim é que é educada a mulher, sem
nunca lhe ensinarem a necessidade de assumir ela própria a sua existência; de bom grado ela
submete-se a contar com a protecção, o amor, o auxílio, a direcção de outrem” (Beauvoir, 2016,
p. 546-547).
mulheres no contexto explicitado na obra. Em um dos diálogos de Tony para com a Rami, pode-
se observar a naturalização e a perpetuação da violência física às mulheres:
Nunca maltratei a Lu, bati nela algumas vezes, apenas para manifestar o meu
carinho. Também te bati algumas vezes, mas tu estás aí, não me abandonaste para
lugar nenhum. A minha mãe foi sempre espancada pelo meu pai, mas nunca
abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam
com um simples açoite. Tens razão, Tony, as mulheres de hoje já não têm juízo. Por
que não te casas com a minha avó? (Chiziane, 2004, p. 284).
Observa-se que, na região norte, na qual a colonização se deu de forma mais amena, a
mulher é um ser de beleza e que dá luz ao mundo, já a mulher do Sul é alguém triste, sem beleza
e autocuidado, considerada ainda como um objecto de posse do homem, por isso, deve ser
submissa ao marido a ponto de aceitar a violência como forma de carinho e afeição.
“Amar e ser amado é coisa de homem. Para a mulher, o amor recebido dura apenas um
sopro, um flash de fotografia, simples pestanejar da vista. Para a mulher, amar é ser trocada
como um pano velho por uma outra mais nova e mais bela como eu fui” (CHIZIANE, 2004, p.
135).
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“Espelho meu, existe neste mundo mulher mais triste do que eu? Há. Há milhões em todo
o mundo” (Chiziane, 2004, p. 247).
A exemplo disso, Rami, casada e “com aliança no dedo” segundo os preceitos coloniais
monogâmicos e católicos, compreende que seria uma atitude profundamente desumana condenar
os filhos e as demais esposas de Tony ao restante do contingente miserável do país. Nesta
sociedade em que abunda o “rearranjo” das estruturas coloniais em contacto com as práticas
endógenas herdadas, a poligamia passa a ser encarada como alternativa ao desamparo de
mulheres com histórico de vida marcado pela cultura de exclusão e tragédia da opressão colonial
que inclui, neste contexto, as consequências da guerra. A par disso, a “socialização” de Tony é
compreendida por Rami como necessária, numa sociedade onde os homens ocupam o “cimo do
monte”.
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Para além disso, no âmbito privado do quotidiano das mulheres em Niketche, a opressão
do colonialismo parece ser a força aterradora pela qual a tradição encontra eco, impondo um
modo de ser subalterno em relação às mulheres. Lembra-se que há na questão da hegemonia
masculina que reina no país, as marcas históricas da colonização e da descolonização.
É, portanto, exemplar a fala da própria sogra de Rami nesta questão que expressa com
fidelidade a ordenação masculina em Moçambique:
“O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte. Ele é a estrela que
brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira. És o pilar desta família.
Todas estas mulheres giram à tua volta e te devem obediência. Ordena-as” (Chiziane, 2004, p.
65).
Todavia, ao invés de “ordená-las” como sugere a sogra, Rami faz com que as mulheres
narrem, emocionem e entristeçam-se com a experiência partilhada, reforçando, sobretudo, os
laços de aprendizagem como formação. Eis o relato:
“As formas puras de acção social são atitudes que os indivíduos tomam em sociedade e
que são norteadas pelo hábito, pela noção de sempre ter sido da maneira corrente. O indivíduo,
então, não questiona seu comportamento e o dos demais; aceita as regras e as segue como se
fossem, de facto, legítimas” (Silva e Silva, 2009, p. 405).
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Sua legitimidade, portanto, era atestada dentro do escopo das convenções sociais que
definiam o que era certo e errado. A propósito desta questão, inclusive, vale destacar que muitos
destes princípios endógenos eram manipulados a fim de corroborar privilégios de grupos
específicos da comunidade, no caso, dos homens. É sabido, aliás, que não só em África, mas em
diferentes países, a questão da divisão de funções com base em questões de género é enviesada,
como se vê em Silva e Silva (2009, p. 408):
“Aprendi a submissão das mulheres changanas. Ajoelhar para entregar um copo de água,
ajoelhar para convidar à mesa, ajoelhar para servir café, ajoelhar para receber um membro da
família, ajoelhar à simples chamada, ajoelhar, ajoelhar sempre” (Chiziane, 2004, p. 260).
Contudo, mesmo diante da submissão pelo acto de ajoelhar-se para servir o alimento,
outro ponto a ser destacado são os traços culturais que dizem respeito à própria alimentação. Na
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Quando servirem galinha, não se esqueçam das regras. Aos homens se servem os
melhores nacos: as coxas, o peito, a moela. Quando servirem carne de vaca, são para
ele os bifes, os ossos gordos com tutano. É preciso investir nele, tanto no amor como
na comida. O seu prato deve ser o mais cheio e o mais completo, para ganhar mais
força e produzir filhos de boa saúde, pois sem ele a família não existe (Chiziane, 2004,
p. 126).
Logo, percebe-se como as funções de criar e de educar uma criança não são destinadas ao
homem. Dessa forma, a mulher vê-se só, já que a responsabilidade e as tarefas relacionadas aos
filhos caem apenas sobre ela.
eficiente, construções várias são feitas com relação aos cuidados com os filhos, que produzem
discursos que projectam, na sociedade, aquilo que ela espera de uma mãe: que ela seja a grande
detentora da capacidade de gerar, educar e formar seres humanos para o mundo. O filho é da
mãe! Mãe é mãe. Pai é outra história”.
Dizem, Serrano e Waldman (2007, p. 129), que “para o africano típico, a sua identidade
está primeiramente centrada na família. É justamente a sua existência que permite compreender
por que a África tem suportado séculos de agressões contínuas. A família africana é uma
categoria muito ampla, incluindo parentes directos e parentes distantes, daí ser denominada
“família extensa”.
Nesta visão de família extensa incluem-se as esposas, todos os filhos e todas as ligações
que destes advêm. Vê-se que um conjunto de factores, combinados entre si, contribui de forma
decisiva para que a monogamia, mesmo sendo a forma de união matrimonial considerada legal
em Moçambique, não consiga suplantar a poligamia.
Pela leitura de Niketche, percebe-se que não se muda um costume milenar de um povo a
partir da compilação de leis escritas. No Norte do país, a poligamia, principalmente entre o povo
Macua, é costume adquirido dos mulçumanos, e no Sul, predominantemente católico, é comum
os negros ricos, mesmo casados, terem muitas mulheres. Tony é nada mais que uma personagem
simbólica, “esculpida” metaforicamente para representar esta realidade em Moçambique.
“Por outro lado, os grupos patrilineares são predominantemente pastores e entendem que
os animais foram dominados pelos homens, que são responsáveis pelo sustento familiar. Além
disso, é atribuída ao homem a responsabilidade pela continuidade da linhagem familiar. Esses
argumentos são fundamentais para os argumentos que inferiorizam a mulher e justificam a
subalternidade imposta social e culturalmente” (Altuna, 2014, p. 87).
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Rami, então, conhece todas as cinco esposas, estreitando os laços familiares com e entre
elas, tornando-se o centro da família poligâmica. A protagonista incita as outras mulheres à
insatisfação por conta da conduta de Tony, estimulando-as à busca por independência. O ápice
do romance configura-se com o desejo das “outras” esposas e filhos de serem apresentados para
toda a família de Tony, conforme a tradição poligâmica.
Rami, entretanto, foi criada conforme as leis da religião católica. Dessa forma, ela nunca
passou por quaisquer rituais que a ensinassem a se tornar uma mulher.
‒ Sem eles, és mais leve que o vento. És aquele que viaja para longe, sem viajar antes
para dentro de si próprio. Não te podes casar, ninguém te aceita. Se te aceita, logo
depois te abandona. Não podes participar num funeral, muito menos aproximar-te de
um cadáver porque não tens maturidade. Nem podes assistir a um parto. Não podes
tratar dos assuntos de um casamento. Porque és impura. Porque não és nada, eterna
criança (Chiziane, 2004, p. 40).
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Em outro ponto da narrativa, quando as esposas de Tony partem em busca de uma nova
mulher para ele, a escolhida, apesar de ser muito jovem, já concluiu os ritos necessários para a
vida adulta:
‒ És ainda criança.
‒ Tenho dezoito anos. Donzelei aos quinze. Sei lavar roupa e lavar a loiça. Não sei
cozinhar bem, posso aprender, mas o mais importante: tenho escamas e tenho lulas.
Aprendi como se faz amor, nos ritos de iniciação.
‒ Donzelar?
Uns dos momentos da narrativa, fica explícita o hiato sócio-cultural existente entre
homens e mulheres, bem como as determinações que regem as relações de género.
- Traição? Não me faça rir, ah, ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino.
Só as mulheres podem trair, os homens são livres, Rami (Chiziane, 2004, p. 29).
Neste momento, Rami é submetida ao ritual do kutchinga durante oito dias após o
suposto falecimento de Tony.
Chilambe (2017, p. 10) acrescenta que “outra explicação para este ritual é que assim, a
família do marido pode continuar a ter poder sobre a mulher, pois ela continua pertencente
àquele seio familiar, perpetuando-se, assim, a hegemonia masculina sobre a mulher. O
purificador é, por costume indógeno, um irmão do marido, neto ou primo.
1
Kutchinga é o nome Bantu dado ao ritual, em português o nome é levirato.
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Minha pele se encharca de suor e medo. Meu coração bate de surpresa infinda.
Kutchinga!' Eu serei kutchingada por qualquer um. E todos aguçam os dentes para me
tchingar (Chiziane, 2004, p. 212).
Sinto alguma coisa quente tocando no meu ombro. É uma mão. Um branco. Sinto
o cheiro de homem (...) Chegou a hora do kutchinga, a tradição entrega-me nos braços
do herdeiro. Por que não me disseram eles que era hoje? (Chiziane, 2004, p. 224)
Ao retornar para o lar, Tony se depara com uma Rami humilhada e destruída e tenta a
todo o custo buscar o perdão dela e de suas outras esposas. Entretanto, com o passar do tempo,
todas abandonam a poligamia, incluindo a protagonista da história.
Dessa forma, Tony, que tinha todas as mulheres aos seus pés, acaba sozinho e
desamparado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra também destaca questões sociais e de género, explorando a posição das mulheres
na sociedade moçambicana e a hegemonia masculina sobre a mulher, submissa.
Por fim, reafirma-se que a representação escrita por Paulina Chiziane permite observar
não só a luta por direitos de igualdade das mulheres moçambicanas, como também potencializa o
olhar às vivências diárias de outras mulheres em outras culturas, que também buscam tornar-se
visíveis e ser valorizadas pela sociedade.
Diante desse fértil cenário, este estudo objectivou identificar, através de um método
bibliográfico, os traços da cultura moçambicana presentes na obra Niketche e as influências
culturais e sociais que permeiam o país, assim como os resquícios culturais herdados pelo
processo de colonização. Da análise feita, pode se concluir o seguinte:
No livro "Niketche", são abordados diversos costumes locais moçambicanos, como rituais
de casamento, cerimónias endógenas de iniciação, práticas endógenas de curandeirismo e
crenças espirituais. A autora também explora a dinâmica das relações familiares e comunitárias,
bem como as expectativas sociais em relação às mulheres e sua posição na sociedade face à
condição de subalternidade em relação à hegemonia masculina. Esses costumes locais são
retratados de maneira vivida e contextualizada ao longo da narrativa.
Nesse sentido, encontra-se a importância da produção literária de Chiziane, não só por ser
uma escritora mulher e negra que enaltece a cultura moçambicana sob o olhar crítico da
realidade de seu país, mas também porque há, neste texto, o comprometimento de que o texto, no
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Referências bibliográficas
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