MANA 27(3): 1-37, 2021 – [Link]
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ARTIGO
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE
ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO
JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
Naara Luna1
1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Seropédica/RJ, Brasil
Introdução
Este artigo examina o julgamento da Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 54 (ADPF 54) no Supremo Tribunal Federal referente
à antecipação de parto (aborto) em caso de anencefalia com o objetivo de
enxergar, através da argumentação contida nos votos dos ministros, eixos
estruturantes do sistema de valores da sociedade brasileira, e sua relação
com a configuração de valores da modernidade ocidental. O tema do aborto
está no vértice da discussão sobre direitos humanos tanto com respeito a
direitos atribuídos ao feto, como o direito à vida, como no tocante à esfera
de decisão da mulher. Nesse contexto, está em debate a condição de pessoa
desses entes fundamentada na configuração individualista de valores da
cosmologia ocidental moderna (Dumont 1997), mas integram o pano de
fundo da argumentação as dimensões holistas relacionadas ao caráter
sagrado da vida e do ser humano (Durkheim 1970, 1989; Dworkin 2003). No
caso da anencefalia, a discussão se estende para aspectos como viabilidade,
racionalidade e sofrimento dos envolvidos. O artigo analisa os votos dos
ministros e o debate do plenário no julgamento da ADPF 54 realizado nos
dias 11 e 12 de abril de 2012.
2 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A antropóloga Debora Diniz pesquisa o tema e desempenha um papel
expressivo como ator na arena do debate sobre o aborto no Brasil. Em memória
do início desse debate, Diniz (2014) remete ao primeiro alvará concedido
em 1989 por um juiz em Ariquemes, Rondônia, autorizando uma mulher a
interromper a gestação de feto portador de anencefalia. A difusão dos exames
de ultrassonografia permitiu seu diagnóstico pré-natal. Assim, o diagnóstico
migrou dos consultórios médicos para as cortes, envolvendo mulheres,
médicos e julgadores. Os casos passam a se concentrar em São Paulo, onde
médicos geneticistas e especialistas em medicina fetal argumentaram sobre
o “descompasso entre o avanço da ciência e a lei” (2014:165). Nessa arena,
a oposição expressou com o termo “ladeira escorregadia” o temor de que a
autorização do aborto em casos de anencefalia ensejasse a descriminalização
irrestrita, acusando de eugenia. Um caso chegou ao STF, mas no julgamento
a turma foi avisada do nascimento e morte do bebê, o que configurava perda
do objeto.1
A ADPF foi um recurso jurídico para possibilitar o julgamento pelo
STF,2 uma vez que as gestações terminavam com perda do objeto, antes
que o julgamento do caso particular fosse efetivado. Diniz afirma que, ao
acompanhar gestantes de fetos com anomalias incompatíveis com a vida,
a maioria optava por interromper a gravidez, declarando no hospital ou na
corte: “eu quero acabar com isso; eu quero antecipar o parto” (2014:168).
Essa expressão inspirou a fórmula “antecipação terapêutica do parto”
empregada em processos judiciais no Ministério Público do Distrito Federal
e na petição da ADPF 54. Do início dos anos 90 até o início dos anos 2000,
estimam-se 3 mil casos nos tribunais pleiteando a intervenção (Diniz
2014:164), nem sempre com decisões judiciais favoráveis. O movimento
de pessoas com deficiência se aproximou do debate. Médicos e juízes se
sentiam acuados pela acusação de eugenia.3 Entre as entidades que podem
solicitar a abertura de uma ADPF está a “confederação sindical ou entidade
de classe de âmbito nacional”,4 por isso idealizadores da ação contataram a
Confederação Nacional de Trabalhadores da Saúde.
Em 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional de Trabalhadores da
Saúde ajuizou a ADPF 54 perante o STF visando assegurar às gestantes de
anencéfalo o direito de se submeterem à antecipação terapêutica de parto
e ao médico a possibilidade de realizá-la, após atestada a anomalia por
profissional habilitado, dispensando a autorização prévia judicial. A ação
descaracteriza a ilicitude penal dessa interrupção da gravidez argumentando
não se enquadrar nos artigos 124, 126, caput e 128, I e II do Código Penal
que tratam do aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento,
e do aborto não punido (Fernandes 2007). Segundo a petição, “antecipação
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UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
terapêutica de parto de anencéfalo não é aborto”5, o que foi fundamentado
na inviabilidade do feto. A aplicação do Código Penal à gestação de feto
anencefálico violaria os preceitos constitucionais de dignidade da pessoa
humana, o princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade e
o direito à saúde (petição:2-4). O ministro Marco Aurélio Mello deferiu a
medida liminar em 1º de julho de 2004, assegurando o direito às gestantes,
contudo, em 20 de outubro, o plenário do STF revogou a liminar. Em 27 de
abril de 2005, aprovou-se a admissibilidade da ADPF 54 (Fernandes 2007).
Após o resultado da Ação de Inconstitucionalidade 3510 (ADI 3510), que
autorizou a extração de células-tronco embrionárias de embriões restantes
de reprodução assistida, o relator Marco Aurélio Mello convocou audiência
pública de instrução, realizada em sessões em 26 e 28 de agosto, e 4 e 16
de setembro de 2008 (Luna 2015).
Após quatro anos, marcou-se o julgamento para 11 de abril de 2012.
O relator Marco Aurélio Mello fez um relatório da ação e proferiu seu voto.
Proferidos os dez votos, decidiu-se o julgamento em 12 de abril. A análise
dessas peças documentais permitirá revelar aspectos do sistema de valores
subjacente aos diferentes argumentos.
Este artigo continua a tradição de estudos das representações coletivas
inaugurada por Durkheim em As regras do método sociológico (1973),
baseando-se na abordagem de Dumont (1997), que opõe duas configurações
de valores que caracterizam as sociedades tradicionais e a sociedade
moderna. Nas sociedades tradicionais, de configuração holista de valores, o
acento está sobre a sociedade como conjunto (ser humano coletivo), o ideal
é a organização da sociedade em vista de seus fins; trata-se de ordem, de
hierarquia. Nas sociedades modernas, de configuração individualista, o
ser humano é elementar, indivisível na forma de ser biológico e de sujeito
pensante. Cada ser humano encarna e humanidade inteira e é a medida
de todas as coisas. A sociedade é o meio e a vida de cada um é o fim. Essa
figura de ser humano é o indivíduo: o ente associal desprovido de relações,
fundamento dos valores axiais de igualdade e liberdade presentes na
configuração ocidental moderna.
O julgamento representa uma etapa da controvérsia pública acerca do
aborto. Uma controvérsia é “um momento de expressão e redefinição de
pontos e problemas, os quais permanecem importantes, às vezes até cruciais,
na constituição de uma sociedade” (Giumbelli 2002:96). Assim, por meio da
análise dessa controvérsia, é possível revelar alguns valores fundamentais
da sociedade no Brasil. Os atores da controvérsia são as mulheres grávidas
(e suas famílias), médicos e cientistas, agentes que pretendem representar
fetos anencefálicos, entre os quais muitos religiosos, e outros sensíveis às
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UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
demandas do movimento de mulheres, além de operadores do Direito: juízes,
advogados, promotores. Vários se apresentaram na audiência pública. No
julgamento no STF, etapa da controvérsia aqui analisada, informados pela
audiência pública, os ministros manifestam-se. Esse julgamento será objeto
de análise do presente artigo, examinando a argumentação proferida nos
votos dos ministros.
O suporte para acesso aos discursos analisados são fontes textuais: nelas
estão “inscritas as informações metodologicamente relevantes e socialmente
significativas” (Giumbelli 2002:102). Os votos são discursos proferidos na
linguagem do Direito, o que implica desafios de compreensão para uma
análise antropológica desses documentos:
El discurso se presenta bajo el signo del saber jurídico, saber que puede producir
un encantamiento en tanto está poblado de tecnicismos y categorías que, una
vez comprendidos, se presentan con la fuerza de lo autoevidente. Intentar
explicar en qué consisten y cómo son aplicados nos debe forzar a tomar distancia,
entendiendo que su construcción encierra toda uma suerte de conflictos diversos
(Muzzopappa & Villalta 2011:37-38).
Além da tradução das categorias dessa linguagem específica, os votos
representam posições diferentes no debate. Este artigo quer identificar nesses
discursos a argumentação acerca do problema do aborto de anencéfalo.
A fim de organizar o material documental no presente artigo, em que
há muitos tópicos repetidos, o voto do relator Marco Aurélio Mello servirá de
arcabouço para apresentar os argumentos e a fundamentação dos ministros
que o acompanharam, acrescentando as colocações mais originais. Em
seguida serão apresentados os argumentos contidos nos votos dos ministros
que divergiram do relator.
Os argumentos serão analisados a partir da fundamentação: se
invocam fundamentos naturais ou de base biológica oriundos da Ciência,
se há fundamentação legal ou no Direito, se são argumentos religiosos
ou filosóficos. No julgamento se representa a configuração individualista
de valores característica da sociedade ocidental moderna, mas certos
argumentos espelham valores opostos, da configuração holista ou tradicional.
Voto do relator Marco Aurélio Mello6
O relator reporta duas informações: 1. “até o ano de 2005, os juízes
e tribunais de justiça formalizaram cerca de três mil autorizações para a
interrupção gestacional em razão da incompatibilidade do feto com a vida
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extrauterina” (Acórdão:2). 2. Brasil seria o quarto país do mundo em casos de
anencefalia (um caso em mil nascimentos). Isso demonstraria a necessidade
de o STF se pronunciar.
O objetivo de uma ADPF é fazer interpretar os enunciados da lei
conforme a Constituição (:33). No caso, são os artigos 124, 126 e 128, incisos
I e II, do Código Penal que tratam do “crime” de aborto, provocado pela
própria gestante, com o consentimento desta, e das exceções à punição. O
relator diferencia aborto e antecipação de parto, qualificando o viés político e
ideológico nas expressões “aborto eugênico ou eugenésico” ou “antecipação
eugênica da gestação” (:34). Considera haver conflito entre os interesses
legítimos da mulher em ter respeitada sua dignidade e os que desejam
proteger os que estão por nascer, independentemente “da condição física
ou viabilidade de sobrevivência” (:34).
O relator é original ao não contrapor o direito da mulher e o do feto,
mas os interesses da mulher e os de quem diz proteger os “nascituros”.
O ministro pergunta se a lei pode obrigar uma mulher a prosseguir a
gestação quando não há expectativa de vida para o feto. Pergunta também
se a tipificação penal (considerar crime) da interrupção da gravidez de feto
anencefálico seria compatível com a Constituição, em particular com os
princípios do Estado laico, da dignidade da pessoa humana, do direito à vida,
da proteção à autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde (:34). No
tocante ao Estado laico¸ afirma que o Brasil é “Estado secular tolerante com
as religiões” (:40). O princípio da laicidade atua de modo duplo: resguarda
as confissões religiosas da intervenção abusiva do Estado e protege o Estado
de influências do campo religioso (:41). A liberdade religiosa e o Estado
laico implicam que as religiões não vão guiar o tratamento estatal a outros
direitos fundamentais, como “o direito à autodeterminação, o direito à saúde
física e mental, o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão, o
direito à liberdade de orientação sexual e o direito à liberdade no campo da
reprodução” (:43). Afirma que argumentos de entidades religiosas devem
ser ‘traduzidos’ (aspas no original) “em termos de razões públicas” (:43).
O segundo ponto é a anencefalia, definida como doença letal sem
potencialidade de vida extrauterina e distinta da deficiência física, passível de
diagnóstico a partir da 12ª semana de gestação por meio de ultrassonografia,
refutando a acusação de aborto eugênico. Descarta o exemplo de Marcela
de Jesus que teve sobrevida excepcional por se tratar de anomalia similar.7
Esse argumento da letalidade absoluta e da inviabilidade do anencéfalo
para vida extrauterina é central no julgamento e na argumentação dos
ministros: a discussão da inviabilidade está presente em todos os votos.
A pergunta é se o feto anencefálico é titular de direitos no mesmo grau que
a gestante.
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O terceiro ponto, referente à proteção do feto, é a doação de órgãos do
anencéfalo. Considera injustificável manter a gravidez para obrigar à doação
de órgãos, o que fere a dignidade da mulher por a “coisificar”. O estado dos
órgãos de um anencéfalo contraindicaria a doação, além disso, para doar, é
necessária a idade mínima de sete dias e os bebês falecem antes8 (:53-54).
O quarto ponto trata do direito à vida do anencéfalo. Argumentando
por sua inviabilidade, não se poderia invocar o direito à vida. Em vista da
impossibilidade de vida, citando o ministro Joaquim Barbosa, o anencéfalo
“mesmo que biologicamente vivo” é “juridicamente morto”, portanto,
a interrupção da gravidez não constitui crime contra a vida (:55). Cita
o jurista Nelson Hungria sobre gravidez extrauterina, dizendo que sua
interrupção não constitui crime de aborto, na impossibilidade de salvar a
vida do feto (:55-56). Segundo o relator, “o feto sem potencialidade de vida
não pode ser tutelado pelo tipo penal que protege a vida” (:56).9 Cita o voto
do relator Carlos Ayres Britto na ADI 3510, para afirmar que, como no caso
do embrião que poderia ser destinado à pesquisa com células-tronco, não
existe potencialidade para se tornar pessoa humana, portanto, não haveria
justificativa para tutela jurídico-penal (:58). Toma o conceito de morte
cerebral para afirmar a impropriedade do direito à vida intra ou extrauterina
no caso do anencéfalo (:58). Defende o caráter não absoluto do direito à vida.
Usa o exemplo do aborto humanitário, quando a gestação é resultado de
estupro, aborto permitido de feto viável, portanto, a lei prioriza os direitos
da mulher sobre os do feto (:58-59). Afirma haver gradações na proteção
do direito à vida, de modo que a tutela desse direito dos anencéfalos seria
menos intensa do que a conferida às pessoas e aos fetos em geral (:59-60).
O ponto 5 trata dos direitos da mulher contrapostos aos do feto
anencefálico: direito à saúde, à dignidade, à liberdade, à autonomia, à
privacidade (:60). O relator cita maior risco à saúde da mulher na gravidez
de anencéfalo.10 Também é mencionado o dano no aspecto psíquico pela
“manutenção compulsória da gravidez”. Menciona que obrigar a prosseguir
essa gestação seria comparável à tortura. Cita decisão do comitê de
direitos humanos da ONU que considerou tratamento “cruel”, “inumano e
degradante” dado a uma mulher no Peru, cuja autorização para interromper
gravidez de feto anencefálico foi negada (:65). Quanto à possibilidade de
sentimento de culpa pela interrupção, caberia à mulher decidir, não ao
Estado intrometer-se, mas apenas informar e prestar apoio à paciente (:66).
Ressalta que não se trata de impor a antecipação de parto, mas que está em
jogo o direito da mulher de autodeterminação, sua privacidade, autonomia
e dignidade humana (:67). O relator invoca o princípio da proporcionalidade
para afirmar que proteger apenas um dos lados da relação, aquele sem
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expectativa de vida extrauterina, representa aniquilar os direitos da mulher,
impondo-lhe “sacrifício desarrazoado” (:68). Conclui que, mesmo que se
conceda o direito à vida ao anencéfalo, “tal direito cederia [...] em prol
dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual,
à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à
saúde”, previstos na Constituição11 (:69). Vota pela garantia do direito de a
mulher se manifestar livremente, sem temer se tornar ré em ação por crime
de aborto (:69). Ele julga procedente o pedido e concorda em não tipificar
como crime a antecipação terapêutica do parto no caso de anencefalia, pois
tal interpretação seria inconstitucional.
O voto do relator privilegia os direitos da mulher: os direitos à saúde,
à privacidade e à autonomia são tributários da configuração individualista
de valores.
Plenário
O relator lamenta que em janeiro de 2004 o próprio tribunal tenha
lançado as mulheres brasileiras em uma “via crucis” para pleitear em juízo a
interrupção da gravidez. Ele percebeu a sensibilidade maior ao tema quando
o STF aprovou a pesquisa com células-tronco, então convocou a audiência
pública. Segundo o relator, não se trata de aborto, mas de interrupção
terapêutica da gravidez para preservar a vida da mulher, pois a gestação de
feto anencefálico porta maior risco (:86).
Percebe-se que, quando relata a “via crucis” das mulheres que precisam
pleitear na Justiça essa autorização e os elevados números de solicitações
judiciais, o ministro vê o caso como problema de saúde pública. Serão
enumerados a partir daqui argumentos de diferentes votos, apresentando
primeiro os favoráveis à ação, ao direito de escolha das mulheres e depois
todos os argumentos contrários à ação e antiaborto. Deve-se salientar que os
ministros não debatem a definição de aborto, nem a terminologia adequada
(interrupção da gravidez), mas se a antecipação terapêutica de parto (termo
empregado na ação) em caso de anencefalia constitui ou não “crime” de
aborto previsto no Código Penal.
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Argumentos favoráveis à ação
Morte encefálica
O argumento da morte encefálica é repetido e essencial para não
enquadrar a antecipação terapêutica de parto de anencéfalo como “crime”
de aborto. O ministro Joaquim Barbosa afirma que o feto anencefálico,
mesmo biologicamente vivo, não tem proteção jurídica. Quanto à proteção
da vida humana através do Direito Penal, defende as teses: “(i) que a vida
vegetativa não é suficiente para fazer de algo um homem, e (ii) que com a
morte encefálica termina a proteção à vida” (:151).
Início da vida: fundamentos biológicos e fundamentos religiosos
Celso de Mello aborda teses que procuram estabelecer conceitos
bioéticos sobre o início da vida. Ele destaca a variedade de teorias, o que
permite optar pela concepção mais ajustada ao interesse público e que
respeite os direitos das pessoas, com o objetivo de conferir sentido real
ao princípio da dignidade da pessoa humana, além de reconhecer as
prerrogativas básicas para qualquer pessoa do direito à vida, do direito à
saúde e do direito à liberdade (:349).
Os estudos mencionados mostram o caráter construído da escolha dos
fundamentos biológicos e religiosos para o início da vida e como a Natureza
é referida nas teorias sobre o início da vida como base da realidade (Laqueur
1992). Uma perspectiva distinta sobre a relação entre a Ciência e o Direito
aparece no voto da ministra Rosa Weber.
Fundamentação na Ciência (Biologia) ou no Direito
A ministra Rosa Weber designa de “falácia naturalista” derivar dever
de proteção baseado na descrição de um fato pela Ciência (:94). Afirma que
a proteção ou não do feto anencefálico não decorre de critérios adotados
pela Medicina em dado momento, mas dos critérios jurídicos concernentes
ao conceito de vida. Ela alerta que a Ciência não tem controle total de seus
conceitos nem pode pretender estabelecer verdades que obriguem outras
áreas do conhecimento, como o Direito. Recupera a história do conceito
de morte encefálica: antes dele a Medicina considerava um sujeito morto
pelo critério de parada cardiorrespiratória. A ministra afirma que “cada
ciência apresenta uma linguagem própria que está em conformidade com
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as condições paradigmáticas aceitas e que é pertinente ao seu campo de
atuação e suas pretensões cognitivas” (:102). Ela aplica a noção de paradigma
à área do Direito e conclui pela independência do conhecimento jurídico,
afirmando que o conceito de vida no Direito deverá ser discutido “de acordo
com sua significação própria no âmbito da dogmática jurídica, da legislação
e da jurisprudência” (:104).
Assim, a ministra afirma a autonomia do conhecimento jurídico quanto
à Ciência, referente ao conceito de vida, para definir a proteção do feto.
Proporcionalidade e ponderação
O pleito da ADPF 54 mostra choque entre direitos conflitantes. Para lidar
com esses casos, vários ministros citaram o postulado da proporcionalidade
em que se pergunta pela adequação do meio para solucionar o choque entre
os direitos (Júdice 2007).
Ilustra-se esse postulado no voto de Rosa Weber. A ministra expõe uma
fórmula da proporcionalidade voltada para a discussão dos dois tipos de
direitos constitucionais envolvidos na ADPF 54: direito de proteção contra
direito de defesa. Afirma o direito de proteção da gestante contra o Estado,
pois este não pode interferir em seu direito de escolha de interromper
a gravidez, sob pena de violar a saúde, a liberdade e a integridade da
mulher (:131).
O direito de proteção contra o Estado evocado pela ministra é a
discussão sobre autonomia, um dos valores mais caros à configuração
individualista de valores, característica da modernidade ocidental, conforme
visto em Dumont (1997).
Para a ministra, a proteção da vida do anencéfalo fere a liberdade, a
integridade física e psicológica da mulher, tanto na esfera da saúde como na
esfera da dignidade humana. Se há dúvidas sobre a viabilidade do feto, impor
essa gestação contra a vontade da mulher seria tortura física e psicológica
(:133). A alegria e a realização das mulheres com filhos anencefálicos
decorrem de suas escolhas e da certeza de serem respeitadas e não impedidas
de gestar seus filhos. Não está em jogo o direito do feto, mas o direito da
mulher viver suas próprias escolhas (:135).
Emprega-se a lei da ponderação quando a colisão de direitos não é
solucionada pela aplicação da máxima da proporcionalidade (Júdice 2007)
vista acima, daí há a necessidade de avaliar as consequências jurídicas dos
princípios em colisão. O raciocínio da ministra Cármen Lúcia exemplifica
a ponderação: o aborto necessário não é punido, quando se demanda a
interrupção da gravidez se não há outro meio de salvar a vida da mãe.
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Na escolha entre dois bens jurídicos, a vida da gestante e a vida do feto, a
opção é pela certeza da vida adulta. A ministra cita o argumento do estado
de necessidade que justifica a lesão a um bem jurídico “quando o mal que
se causa é menor do que aquele que se evita” (:198).
A prática da ponderação se assemelha ao princípio social da hierarquia
descrito por Dumont (1997): hierarquizar é adotar um valor.
Grau de proteção da vida
Joaquim Barbosa discorre acerca do grau de proteção à vida. Pergunta
se, quando a vida extrauterina do nascituro é inviável, caso da anencefalia, o
Direito deve garantir o mesmo grau de proteção. Defende que a tutela da vida
humana tem graus diferenciados. O ministro discerne três situações: do feto
em desenvolvimento, do feto biologicamente morto, e do feto biologicamente
vivo, mas juridicamente morto (:151).
Para a presente análise, ele demonstra nesse ponto o embate entre
diferentes fundamentos: a vida em termos biológicos não tem necessariamente
reconhecimento jurídico.
O ministro afirma que o feto anencefálico, mesmo estando biologicamente
vivo, não tem proteção jurídica.
A discrepância no grau de proteção da vida revela-se na comparação
feita pela ministra Rosa Weber das penas para os crimes contra a vida no
Código Penal e constata uma gradação quanto à proteção da vida como bem
jurídico, pois as penas variam, ponto que ilustra a proporcionalidade. A pena
para aborto é menor do que a de infanticídio12 e esta é menor do que a de
homicídio. A pena por aborto é inferior à pena por lesão corporal grave. A
situação da mãe ou da gestante no caso de aborto e infanticídio é levada em
consideração. Não se pune o aborto em caso de estupro, situação em que
o feto é viável e, no entanto, não há interesse em proteger o feto contra a
gestante. Ela conclui que, para o direito penal, a vida não é um valor único
e absoluto (: 105).
Essa conclusão se choca com o ativismo antiaborto, que coloca a vida do
feto como valor supremo, conforme visto na audiência pública (Sales 2015),
e a posição dos ministros contrários à ação abordada adiante.
Religião e Estado laico
Apresenta-se a relação entre religião e o princípio de laicidade do
Estado desde o início do julgamento. O engajamento de agentes religiosos
no debate público sobre aborto é notório (Diniz 2008; Luna 2013), sendo um
tema mencionado em abordagens distintas.
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Celso de Mello define a postura do Estado laico: é “proibido, ainda,
ao Estado, o exercício de sua atividade com apoio em princípios teológicos”,
mesmo que “se trate de dogmas consagrados por determinada religião
considerada hegemônica no meio social”, sob a pena de concepções religiosas
se tornarem critério para definir decisões estatais e políticas de governo
(:334). A separação constitucional entre Estado e Igreja tem o objetivo de
resguardar duas posições: 1. assegurar a liberdade religiosa; 2. impedir que
grupos fundamentalistas se apropriem do aparelho do Estado para impor aos
demais cidadãos a observância de suas diretrizes religiosas (:338).
Já o ministro Gilmar Mendes avalia que os argumentos de organizações
religiosas devem ser considerados, porque se relacionam a razões públicas,
por isso não impede a manifestação de entidades religiosas nos debates
públicos (:271-276). Na abordagem do direito comparado, o debate em países
“religiosos”13 enfatiza que a vida intrauterina deve receber proteção estatal
e que seus direitos podem se sobrepor aos direitos da gestante.
Percebe-se a transgressão dos limites atribuídos ao Estado laico na
declaração do ministro Luiz Fux, ao comentar várias comunicações escritas,
e-mails e cartas com o tema do julgamento, fazendo uma declaração pessoal:
Agradeci a Deus por poder contribuir com a humanidade por meio de uma
decisão que pode conjurar tristezas, angústias, dores, aflições e, ao mesmo
tempo, pedi a Deus que a razão e a paixão me acompanhassem no exercício
desse mais alto apostolado que um ser humano pode se dedicar nesse mundo
de Deus: a magistratura (:154-155).
Em tempos de debates acalorados sobre o Estado laico, o ministro ousou
assumir que agradeceu a Deus tanto pela oportunidade de contribuir na
decisão, como pediu a Deus sobre seu exercício na magistratura. O plenário
não reagiu à declaração.14
A diferente relação com a laicidade expressa nesses três extratos de
discursos dos ministros mostra a complexidade do tema, tanto com respeito
à tradição republicana que propõe rigorosa separação entre Estado e Igreja
e a restrição da influência de autoridades e grupos religiosos na esfera
pública, como a tendência oposta de interpretar de modo lato a laicidade a
fim de garantir a legitimidade da ocupação religiosa da esfera pública, ou
a interpretação na perspectiva multiculturalista de conceder mais espaço à
religião (Mariano 2011:252-3).
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Sofrimento: a experiência das gestantes e suas famílias
Outro ponto enfatizado diz respeito ao sofrimento. Os ministros
comentam relatos das experiências das gestantes e famílias. O ministro Fux
lê carta que relata a dor do casal: a “gestante assistiu durante nove meses
ao funeral do seu filho” (:155).
Cármen Lúcia observa que “o útero é o primeiro berço de todo ser
humano” (:173), mas nesse caso “o berço se transforma num pequeno
esquife”. Ela fala de uma relação entre seres: da mãe, que deve lidar com
possibilidade da morte antes da vida, e do anencéfalo. Trata-se de uma
escolha trágica, segundo a ministra, a escolha da menor dor. Por ser baseada
na dignidade da vida, essa interrupção é não criminalizável (:174).
A ministra Cármen Lúcia conclui: “Não há a quem imputar a
responsabilidade pela injustiça de uma mulher gestar um feto inviável.
A injustiça não está no sofrimento involuntário, mas na tortura do dever
da gestação de um feto inviável provocada pelo Estado ao impedi-la de
interromper a gestação” (:189). A ministra continua a mencionar o sofrimento
das famílias em seu voto: embora alguns tenham convicções religiosas ou
filosóficas para sustentar a gestação, outras serão obrigadas a prosseguir
com uma gestação sem perspectiva de vida, serão “chamadas a escolher
um túmulo e um pequeno caixão enquanto o seu era o sonho de adquirir
um berço e um enxoval” (:201).
O sofrimento das mulheres, ao descobrirem a condição irremediável dos
fetos que gestam, e das famílias é um dos vetores para mobilizar a opinião
pública, bem como dos ministros. A esse respeito cabe a análise de Boltanski
acerca do sofrimento à distância e do engajamento do “espectador ” do
sofrimento em uma causa como se fosse sua:
No ideal do espaço público um sofrimento local pode ser transportado sem
deformação, de maneira a se tornar disponível para qualquer um, ou seja,
para todos aqueles que – por força da disponibilidade que lhes confere sua
ausência de comprometimento prévio – são livres para dele se apropriar, ao se
descobrirem concernidos e passarem ao engajamento e à adoção da causa como
sua (Boltanski citado em Duarte, 1996).
No julgamento pelo STF de uma ação como a ADPF 54, os sofrimentos
individuais cujos relatos foram citados, tornam-se uma causa coletiva à qual
a sociedade, por meio do sistema judiciário, precisa responder, conforme
ressaltou o relator acima ao informar o impressionante número de três mil
autorizações formalizadas nos tribunais (até 2005) para interromper esse
tipo de gestação. O grande número de casos registrados mostra o caráter
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 13
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
social da aflição, uma concepção de sofrimento social, segundo a abordagem
de Víctora, vinculado às “políticas e economias da vida, verificadas em
condições e configurações históricas e sociais específicas” (2011:6). Com
base em Kleinman, Víctora afirma que “uma dimensão importante do
sofrimento social está relacionada aos processos políticos e profissionais,
os quais podem envolver (1) apropriações autorizadas ou contestadas do
sofrimento coletivo; (2) a medicalização da vida; e (3) sofrimento na relação
com políticas públicas” (2011:6). No caso do pleito por aborto ou antecipação
terapêutica do parto em função da inviabilidade do anencéfalo, o sofrimento
social decorre também da contestação do sofrimento pelas autoridades do
Estado, tanto por parte do Congresso Nacional em sua omissão para aprovar
nova lei como a de juízes que negam as autorizações de aborto no caso,
ou dos ministros do Supremo que contestam a aflição dessas mulheres e
de suas famílias. Segundo a classificação apresentada por Víctora, o caso
corresponderia a dois dos tipos: o primeiro com a apropriação contestada do
sofrimento coletivo, e o terceiro por conta da relação com políticas públicas.
Condição de pessoa
Eis um argumento central, pois a condição de pessoa define se um ente
é portador de direitos.
Fux descreve a anencefalia e ressalta as limitações de um anencéfalo
“cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor” (:156), salientando a
impossibilidade total de ganho de consciência em função da ausência do
cérebro, bem como a morte logo após o nascimento.
Para a presente análise, é fundamental observar que as limitações
do anencéfalo apresentadas pelo ministro no tocante à vida de relação o
descaracterizam como um ser humano pleno, em particular com respeito à
impossibilidade de ganho de consciência. Essas questões são colocadas em
artigos médicos que comparam a anencefalia com a morte cerebral (Penna
2005): a incapacidade de adquirir sensações e a de desenvolver a consciência,
mesmo se nascido “vivo”, isto é, com batimentos cardíacos, são cruciais
para negar que tal feto esteja vivo de fato, e possa ser considerado um ser
humano pleno, dotado de direitos. Penna usa a expressão “biologicamente
ativo” para os sujeitos em morte cerebral mantidos por respiradores e drogas,
ressaltando a diferença entre pessoa morta e organismo vivo, e estende essa
categoria aos fetos anencefálicos.
14 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A pergunta central da ADPF: propriedade da aplicação da lei
Nas palavras do ministro Fux, o Supremo tem que decidir se é justo,
sob o aspecto criminal, “colocar uma mulher que, durante nove meses, leva
em seu ventre um feto anencefálico, o qual não tem condições de vida, no
banco do Júri, porque aborto é crime contra a vida e sujeito à competência
do Júri” (:159).
A ministra Cármen Lúcia pondera que, se o Código Penal é omisso
quanto ao caso da anencefalia, o magistrado deve ter compreensão quanto
à gestante que opta pela interrupção da gravidez nesse caso. A ministra
afirma: “Não se há de negar compaixão, porque seria injustiça, menos ainda
o direito, porque seria antijurídico, à mulher que, trazendo um pequeno
caixão no que é o seu berço físico, vai às portas do Judiciário a suplicar pela
sua vida” (:221).15
Se, no sentido formal do Direito, a mulher não se enquadra nas exceções
à punição, portanto, deveria ser julgada pelo aborto do anencéfalo, ou não
poderia pleitear o aborto legal, os ministros Fux e Cármen Lúcia se colocam
na perspectiva do Direito material, isto é, da finalidade do Direito: o que
ele garante ou exige.16 Deve ser considerada a noção de culpa e os graus de
culpabilidade relativos à intenção do delinquente (Weber, 1998:503): não se
deve atribuir culpa à mulher por antecipar o parto de feto inviável.
Proteção das minorias pelo Estado
Outro aspecto é considerar o dever do Estado de proteger grupos
vulneráveis e minorias, caso das gestantes de fetos anencefálicos. Nesse
sentido, o ministro Fux contrapõe o caso ao julgamento da Marcha
da Maconha e da união homoafetiva em relação a uma política de
reconhecimento da diferença, o que evita marginalização da sociedade
civil (:167).
Celso de Mello também alega a “função contramajoritária” do Supremo
Tribunal Federal de reconhecer e outorgar proteção a grupos vulneráveis
contra excessos da maioria ou contra omissões que se tornem lesivas, diante
da inércia do Estado, aos direitos dos que sofrem os efeitos do preconceito
e da discriminação jurídica (:358-9). Cita o julgamento da ADI 4.277,
referente à união estável homoafetiva, como exemplo da preservação e
do reconhecimento de direitos de grupos vulneráveis, da qual a corte é
incumbida de velar. Comenta sobre a atuação no Congresso Nacional de
grupos majoritários que ensaiaram medidas arbitrárias com o objetivo de
frustrar o exercício de direitos assegurados pela Constituição a organizações
minoritárias (:359-364).
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 15
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Ambos os ministros ressaltam a necessidade de contemplar na
interpretação da lei as situações das minorias. Assim, evoca-se a participação
do Poder Judiciário em promover maior acesso à justiça e à igualdade de
direitos sob o argumento do princípio da democracia, diante da acusação
que o Legislativo privilegia os desejos da maioria e cristaliza desigualdades
sociais (Coitinho Filho & Rinaldi, 2018:31-32).
Inviabilidade
O argumento da inviabilidade é dos mais citados para diferenciar a
antecipação terapêutica de parto e o “crime” de aborto.
Joaquim Barbosa, com base na literatura especializada e nos
depoimentos da audiência pública, afirma que 50% dos anencéfalos nascem
mortos e os outros 50% morrem em poucos dias, não sendo possível “vida
extrauterina independente” (:147).
O argumento crucial sobre inviabilidade na perspectiva do Direito foi
citado pelo relator Marco Aurélio: “o feto sem potencialidade de vida não
pode ser tutelado pelo tipo penal que protege a vida” (:56), ou seja, não se
protege feto inviável, porque este não seria um vivente conforme o Direito.
Conceito de vida
A inviabilidade fetal remete à ausência de expectativa de vida
extrauterina. É necessário compreender o conceito de vida e se cabe no
caso do anencéfalo.
Cármen Lúcia afirma que a vida não deve ser considerada apenas em
sua acepção biológica, mas em sua acepção biográfica mais compreensiva.
O direito à vida não deve se restringir à mera subsistência, mas a um modo
de viver especificamente humano (:195-197).
É possível comparar o pensamento da ministra com a análise de Waldby
(2002:313) acerca da pesquisa com embriões humanos: a vida não deve ser
apenas uma vitalidade biológica crua, como a presente nos embriões em
estágio inicial próprios para extração das células-tronco e, por analogia na
presente análise, no anencéfalo. Tampouco se encontraria nos embriões
iniciais, nem no feto anencefálico, uma acepção biográfica de vida, como
ponto inicial de uma narrativa que se deve deixar seguir seu curso. Assim,
não basta o processo vital: eles deveriam ser pessoas no sentido jurídico
ou no antropológico. Waldby e Squier (2003:36) afirmam que a biologia
é orientada por alvos (goal-oriented) e que seu alvo é a produção de um
sujeito totalmente humano. Esse humano pleno não se efetiva nos embriões
de pesquisa, nem nos fetos anencefálicos.
16 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Falta no caso da anencefalia a pessoa humana na acepção de Mauss
(2003), que descreve a construção histórica da noção de pessoa e do eu.17
Cármen Lúcia prossegue relacionando o conceito de vida com a
condição do anencéfalo. A despeito da inviabilidade de vida extrauterina,
há duas correntes: a primeira entende que o anencéfalo apresenta sinais
vitais no ventre materno e será titular de direitos desde a concepção (:212).
A segunda corrente não o considera titular de direitos, e pela ausência de
vida cerebral, seu aborto seria um “crime impossível” (:213). A ministra
se alinha com a segunda corrente afirmando a inexistência de aborto de
feto anencefálico, pois está ausente o objeto jurídico tutelado (:215), a vida
do feto, por isso não haveria “crime” de aborto. O anencéfalo não dispõe
de condições para adquirir a personalidade do ser com vida, mas merece
proteção estatal como ente desprovido de possibilidade de vida, com proteção
indireta, e direito a nome, sepultura e respeito à imagem (:214).
Os direitos citados surgem no constituir da noção de pessoa ao longo
da história (Mauss 2003). Essa abordagem é ambivalente: por um lado, não
considera o anencéfalo apto a adquirir personalidade, por outro, concede
proteção e direitos próprios da pessoa como direito ao nome, ao sepultamento
e a ter a imagem preservada.
Direito à vida
O direito à vida é ponto central para o posicionamento contrário à
ação, mas é enfrentado também pelos favoráveis. A ministra Cármen Lúcia
considera o direito à vida do nascituro e compara com o anencéfalo: “o direito
à vida é garantia constitucional e, porque o nascituro tem a expectativa
de vida, foram-lhe assegurados direitos presentes e futuros, esse com o
nascimento com vida” (:209). Ela pondera que, se não há consenso quanto
ao início da personalidade, verifica-se o fim da existência pela constatação
da morte encefálica (:210).
No tocante ao direito à vida, há duas ideias diferentes no debate público
sobre aborto: uma tese pressupõe que “fetos são criaturas com interesses
próprios desde o princípio”, “inclusive o direito de não serem mortos”
(Dworkin 2003:12), o que representaria a perspectiva do direito à vida.
De acordo com a segunda tese, “o aborto é errado em princípio, porque
desconsidera e insulta o valor intrínseco, o caráter sagrado, de qualquer
estágio ou forma de vida humana” (2003:13).
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 17
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Dignidade
A dignidade humana é um dos princípios invocados na ação e, para
discuti-la, a ministra Cármen Lúcia cita o pensamento de Kant, em sua
definição de liberdade que só é possível aos seres racionais e implica a
possibilidade de fazer as próprias escolhas. Na concepção kantiana de
dignidade humana, o ser humano não pode ser tratado como um meio para
a obtenção de alguma coisa, mas considerado um fim em si mesmo (:223).
Fagot-Largeault, analisando os impasses das pesquisas com embriões
humanos, afirma que: “O respeito, no sentido kantiano, destina-se ao agente
moral, isto é, a um ser capaz de se autodeterminar, de se comportar segundo
a representação que ele tem do imperativo moral” (2004:240). Continuando
a analogia, nem o embrião, nem o feto anencefálico teriam autonomia moral.
Direito de escolha
Cármen Lúcia defende o direito de escolha: “Pela Constituição da
República o direito à saúde abrange a proteção à maternidade. Ser mãe é dar
à luz, permitir nascer uma nova vida, não deixar-se velar o ventre enquanto
aguarda o dia do enterro do pequeno ser” (:235). Ressaltando o direito de
prosseguir a gestação no caso da anencefalia ou de optar pela interrupção,
a ministra afirma: “Quem não domina o seu corpo não é senhor de qualquer
direito. Pelo que a escolha é direito da pessoa, não atribuição do Estado”
(:236). Tal afirmativa sobre a escolha resume o princípio da autonomia, que
é pilar da ideologia individualista moderna (Dumont 1997).
Legislador positivo
Uma indagação de natureza formal (sobre a correta condução
do processo): se o STF, ao concordar com a ADPF, ultrapassaria suas
prerrogativas de interpretar as leis segundo a Constituição, e acrescentaria
uma nova exceção ao Código Penal, em razão da omissão normativa (omissão
da lei): não é punido o aborto em caso de diagnóstico de anencefalia.
Gilmar Mendes considera que, ao julgar o mérito da ADPF 54, o STF
admitiu a possibilidade de atuar como legislador positivo, acrescentando
um excludente de ilicitude ao crime de aborto (:302), ou seja, somando um
permissivo em que o aborto não é punido.
Celso de Mello argumenta que a antecipação de parto não compreende
a ideia de aborto. Nesse sentido, o tribunal deve acrescentar entre as
modalidades de exclusão do crime de aborto uma terceira hipótese:
18 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
antecipação terapêutica de parto de feto portador de anencefalia (:356). Essa
sentença impediria a incriminação da mulher que opta pela interrupção da
gestação.
Direitos sexuais e reprodutivos e direitos humanos
Celso de Mello confronta a “magnitude do direito à vida e a discussão
em torno de sua titularidade” e os valores que se “fundam nos direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres”: o direito da prática do aborto seguro, o de
controlar a própria fecundidade e o de decidir sobre sua sexualidade. Tais
direitos representam “projeção expressiva dos direitos humanos reconhecidos
às mulheres” pelas conferências internacionais promovidas pela ONU (:318-
320).18 Ele cita resoluções de conferências internacionais voltadas a “eliminar
preconceitos sexuais na administração da justiça” e erradicar conflitos que
possam surgir entre direitos das mulheres e práticas tradicionais (:321).
Posições contrárias à ADPF 54
Se as grandes batalhas sobre aborto e eutanásia são realmente travadas em
nome do valor intrínseco e cósmico da vida humana, [...] então essas batalhas
têm uma natureza quase religiosa (Dworkin 2003:19).
Dois ministros votaram contra a ação: Ricardo Lewandowski e Cézar
Peluso. As linhas de argumentação desses ministros são distintas, por isso,
os votos serão analisados separadamente.
Argumentação de Ricardo Lewandowski
Acusação de eugenia
Lewandowski cita criminalistas que não consideram legítimo o aborto
“eugenésico”, quando a criança nasce com deformidade grave ou incurável,
mas consideram punível. Refuta que na promulgação do Código Penal
em 1940 e na reforma em 1984 não houvesse métodos de diagnóstico de
patologias fetais. Defende que o Congresso Nacional, “intérprete último da
vontade soberana do povo” (:241), com base nesse instrumental científico,
poderia ter alterado a legislação para incluir o aborto eugênico.
O ministro usa o rótulo de acusação “aborto eugênico”, acusação
afastada por outros ministros ao alegarem a inviabilidade de vida extrauterina
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 19
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
do anencéfalo, o que o diferenciaria do deficiente. Na audiência de instrução
da ADPF 54, uma representante de entidade em defesa das pessoas
portadoras de deficiência, contestou tal classificação, citando a Convenção
das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência, porque deficiência
pressuporia a presença de vida mesmo que na forma de expectativa de
vida (Luna 2015). Segundo Diniz e Velez, “Confunde-se anencefalia e
deficiência intencionalmente a fim de aproximar o debate sobre a interrupção
da gestação do aborto eugênico”, ou “como uma expressão da ignorância
médica sobre o significado da anencefalia como uma malformação inviável
e letal” (2007:30).
Legislador positivo: o papel que não cabe ao STF
De acordo com Lewandowski, não é possível fazer uma interpretação
que afronte a “expressão literal da lei”, e não se pode contrariar a vontade
manifesta do legislador, nem de se substituir a ele (:244). O Supremo
Tribunal Federal pode exercer apenas o papel de legislador negativo, tendo
a função de retirar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com
a Constituição.
Esse entendimento rejeita o papel de ampliar a intepretação da lei
nesse caso específico: o Legislador positivo. Essa figura corresponde em
termos sociológicos ao ativismo judicial, quando “profissionais do Judiciário
identificam-se como responsáveis em aplicar os princípios estabelecidos
pela Constituição Federal e questões de repercussão social e política [...]
são decididas pelo Poder Judiciário e não pelo Congresso Nacional ou pelo
Poder Executivo” (Coitinho Filho & Rinaldi 2018:30). Esse papel foi admitido
acima quando ministros favoráveis à ação defenderam a ampliação.
Inviabilidade: outras doenças
Lewandowski ressalva que, além de envolver o princípio fundamental de
proteção à vida, uma decisão favorável ao abortamento de fetos anencefálicos
permitiria tornar lícita a interrupção da gestação de qualquer embrião que
tenha pouca ou nenhuma expectativa de vida intrauterina. Cita a CID 1019
da Organização Mundial de Saúde que arrola dezenas de patologias fetais
sem chance de sobrevivência, além de outras referidas na audiência pública
“acardia, agenesia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal,
holoprosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13
e 15, trissomia do cromossomo 18” (:247).
20 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O ministro toca em ponto sensível: por que enfocar a anencefalia se
há outras patologias incompatíveis com a vida? Esse argumento revela a
importância do cérebro como órgão central para estabelecer a noção de
pessoa: “uma concepção fisicalista que relaciona cérebro e indivíduo”, traço
central na concepção de pessoa moderna (Azize 2010). Esse aspecto está
relacionado ao argumento da impossibilidade de vida de relação, o que se
choca com a condição de pessoa. Por outro lado, a enumeração de outras
patologias invoca a tese da ladeira escorregadia (Diniz 2014), que pressupõe
uma abertura geral para qualquer caso.
Direitos do nascituro
O ponto central para o ministro são os direitos do nascituro. Lewandowski
ressalta a existência de outras legislações que protegem a vida intrauterina,
com destaque para o artigo 2 do Código Civil: “a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro” (:248). Essa lei e outras legislações
garantiriam proteção de fetos que podem ter a vida encurtada por serem
portadores de patologias.
O ministro considera os fetos de modo geral e o anencefálico em
particular como sujeito titular de direitos (cf. Dworkin supra)
Deficiência física: graus de anencefalia
Para sustentar a analogia com a discriminação das pessoas portadoras
de deficiência física, o ministro fala em graus de anencefalia. Segundo
Lewandowski, a ciência demonstra haver
Vários graus de anencefalia, desde uma anencefalia total, completa, em que há
inviabilidade plena de sobrevida do feto, até uma anencefalia menos grave, que
permite até uma vida, por um certo período de tempo, que não é completamente
vegetativa (:370).
O argumento sobre graus de anencefalia, fundamentado na condição
biológica, remete ao conceito de biossocialidade de Rabinow (1999) referente
a termos de identidade, através dos quais os sujeitos se organizam na
sociedade contemporânea com o advento da nova genética.
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 21
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Argumentação de Cézar Peluso
Os votos contrários à ação concordam com a impossibilidade de o
Supremo Tribunal Federal assumir o papel de legislador positivo. O voto
de Peluso, então presidente do STF, tem uma linha argumentativa distinta,
evocando a “retórica emocional e estridente” (Dworkin 2003:26-27) do
ativismo antiaborto.
Presença de vida no anencéfalo
Ele cita o próprio voto na ADI 3510. Afirma que a noção de vida não é
uma criação da ciência jurídica, mas uma “realidade pré-jurídica” de que
se apropria o Direito (:378). Refuta ser possível “pensar o ser humano como
entidade que só mereça qualificação jurídico-normativa de ser vivo, quando
seja capaz de pleno desenvolvimento orgânico e social, de consciência e de
interação” (:378). Sustenta que todo anencéfalo é dotado dessa capacidade
de movimento autógeno (por si mesmo) vinculada ao processo da vida, a
não ser que já tenha morrido.
Essa posição se contrapõe às de Rosa Weber e Joaquim Barbosa,
que consideraram essencial o papel constitutivo da ciência jurídica em
estabelecer conceitos e fatos (semelhante à perspectiva do construcionismo
social). Já, no entender de Peluso, a base biológica é precedente, pensamento
que se dá conforme a cosmologia ocidental moderna, quando a natureza é
considerada a base da realidade, e o corpo biológico “a-histórico” se torna
fundamento de prescrições da ordem social (Laqueur 1992).
Questionamento da analogia com a morte encefálica
Peluso julga insuficiente a analogia entre morte encefálica e o início da
vida a partir dos seguintes argumentos: 1. A morte encefálica caracteriza-se
por ser “uma situação de prognóstico, de uma irreversibilidade em que
não há respiração espontânea” (:380), o que não é o caso do anencéfalo;
2. Avalia que a audiência pública produziu resultados contraditórios
acerca da existência de atividade cerebral no anencéfalo; 3. Refuta que o
feto acometido de anencefalia não tenha encéfalo; 4. A morte encefálica
representa a interrupção irreversível do ciclo vital que chega ao fim, enquanto
a anencefalia integra o processo contínuo e progressivo chamado vida, por
isso, sua evolução em relação à morte não pode ser abreviada; 5. Insiste
na inconsistência da analogia com a morte cerebral, mas reconhece que o
fundamento jurídico de aproveitar os órgãos no caso de morte encefálica
22 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
é o mesmo que autoriza o aborto terapêutico, pois, em ambas as situações,
leva-se em conta o ato necessário para salvar a vida de terceiros, sendo
estes o receptor de órgãos e a gestante (: 381-382). Esse ponto é o cerne de
sua argumentação.
Peluso rebate a invocação dos princípios da autonomia da vontade, da
liberdade pessoal e da legalidade como fatores de legitimação do aborto
de anencéfalo, e considera crime toda interrupção dolosa do curso da vida
intrauterina (:382). Para configurar o aborto como crime, basta a eliminação
da vida, abstraída de especulação quanto à viabilidade extrauterina, conduta
proibida por lei. Não se resguarda a autonomia da vontade quando se
volta “ao indisfarçável cometimento de um crime” (:383). Não caberiam os
excludentes de punibilidade do aborto.20
Dignidade da vida intrauterina: aborto como assassinato
Equiparar ao assassinato é ponto-chave da retórica do ativismo
antiaborto. Peluso compara o aborto de feto anencefálico e o assassinato
de bebês com anencefalia recém-nascidos, dizendo que diferem apenas
no “momento de execução”. Afirma que, sob a Constituição, formas de
vida intrauterina e extrauterina teriam o mesmo nível de dignidade, e que
ninguém aceitaria matar um bebê anencéfalo nascido “com a finalidade de
poupar a mãe à carga de frustração, sofrimento, tortura psicológica” (:387).
Peluso rebate o argumento da ADPF 54, afirmando que a dignidade da vida
intrauterina está em jogo (:387s). Refuta que o direito à vida seja “suscetível
de graduações axiológicas” (:389): direito à vida absoluto.
Quando Peluso atribui a mesma dignidade à vida intrauterina e
à vida extrauterina, considerando absoluto o direito à vida, ele parece
fechar a possibilidade do aborto legal, que seria considerado “execução”.
Contudo o ministro aceita as hipóteses em que não se pune o aborto no
caso do estupro e para salvar a vida da mãe. Ele enfatiza que qualquer
gestação incorre em risco à saúde. Quanto ao estupro, sua ênfase é que
a autonomia da mulher foi ferida com a violência sexual, mas ele destrói
todos os argumentos fundamentados nos direitos sexuais e reprodutivos,
questionando a autonomia da mulher como um valor inferior à dignidade
da vida do anencéfalo.
O pensamento de Peluso explicita o princípio da hierarquia de Dumont
(1997), sendo a gestante de anencéfalo englobada pelo feto considerado
um sujeito. A crítica feminista a tal posição afirma que, do ponto de
vista do “controle patrimonial dos corpos”, a mulher não é uma pessoa
(Rostagnol 2008), ponto sugerido nos votos de Peluso e Lewandowski.
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 23
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Nessa perspectiva, as gestantes de anencéfalos são menos merecedoras de
direitos que o feto inviável, como na comparação entre sujeitos mais e menos
humanos (Fonseca & Cardarello 1999).
Comparação com eutanásia
Peluso considera que a curta potencialidade da vida não representa
razão válida para impedir sua continuidade. Compara o aborto de anencéfalo
e a eutanásia: argumenta que nesses dois casos se quer autorização jurídica
para a prática de um crime.
Tal comparação, frequente na retórica antiaborto, revela questões
centrais comuns ao debate acerca da eutanásia: a crença na “manutenção
do estado vital como único valor atribuído à vida” (Menezes & Ventura,
2013:217), entendimento estreito que não admite espaço para liberdades
individuais nem pluralismo moral, em discurso que culpabiliza os
atores sociais, segundo Peluso, por “impertinentes ideias de liberdade
pessoal” (:406).
Impossibilidade de certeza do diagnóstico
O ministro Peluso alega a impossibilidade de certeza do diagnóstico
de anencefalia. Cita o exemplo de Marcela de Jesus, cujo diagnóstico foi
controverso mesmo após o nascimento. Contudo, seria contrário ao aborto
até havendo certeza: “ainda que a técnica evoluísse a ponto de discernir
claramente os casos de verdadeira anencefalia, a eliminação daquele feto
não seria compatível com o Direito” (:402).
Tortura: sofrimento não é degradante
Peluso rebate os argumentos que obrigar uma mulher a manter contra
sua vontade a gravidez de anencéfalo até o fim seria comparável à tortura.
Segundo ele, o método proposto para encurtar o sofrimento tem impedimentos
legais por constituir crime de aborto e constitucionais (direito à vida e à
dignidade humana do feto) (:403-404). Afirma que o sofrimento no caso
não é infligido propositadamente. Acusa a ação de culpar o Estado por
dramas originados da conjugação de ato livre e do acaso biológico (:404).
O ministro, ao identificar a origem da anencefalia no acaso, nega haver
injustiça. Defende que: “O sofrimento em si não é alguma coisa que degrade
a dignidade humana; é elemento inerente à vida humana” (:404). O sistema
jurídico repudia apenas os atos injustos que causem o sofrimento.
24 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Apenas o sofrimento vindo da prática de um ato ilegal não pode
ser admitido pela ordem normativa. Diniz e Velez contestam: “Em um
ordenamento jurídico laico e plural, não importa se há origem para essa
injustiça ou se ela é imputada à loteria da natureza”, e alertam para
“mecanismos sociais de proteção ou de abandono desta mulher” (2007:31).
A tese de Peluso, em sua indiferença à dor da gestante e da família, ilustra
o Estado produtor de sofrimento social (Victora 2011).
Liberdade de escolha
Peluso refuta também o princípio da liberdade de escolha, pois a solução
(o aborto) apoia-se em:
Impertinentes ideias de liberdade pessoal, inexistente quando se cuida
da tipificação de crime, e de tortura, onde não há sofrimento injusto nem
intencional, reflete apenas uma atitude individualista e egocêntrica, enquanto
sugere prática cômoda de que se vale a gestante para se livrar do sofrimento e
da angústia, sobrepondo ao sentido ético de respeito (:406).
Afirma que os males de que a mãe padece não foram originados de um
terceiro, como na gravidez decorrente de estupro, nem ameaçam a sua vida,
nem degradam a dignidade humana (:407).
A ênfase total no feto em detrimento da gestante, cujo sofrimento não
degradaria sua dignidade, segundo o ministro, reduz a mulher a suporte
para desenvolvimento fetal.
Essa posição de Peluso ignora a mulher e a destitui de dignidade.
Ponderação a favor do anencéfalo
Peluso também apela para o esquema de ponderação de bens, mas para
a defesa do anencéfalo contra o direito de escolha da gestante:
A vida humana, hospedada na carne frágil de feto imperfeito, não pode, a
despeito da fortuita imperfeição que lhe não subtrai a dignidade jurídica
imanente, ser destruída a fórceps para satisfazer sentimento, quase sempre
transitório, de frustração e de insuportabilidade personalíssima de uma dor
ainda que legítima (:407).
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 25
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Estupro: sem analogia
Peluso passa ao caso de estupro: neste a concepção decorre de ato
delituoso de outrem, caso em que repugna à mulher manter a gravidez como
consequência “inevitável, de violência odiosa e sobremodo injusta” (:408,
ênfases originais). Culpa pela anencefalia pode ser atribuída ao acaso, à
natureza, à genética. Isso não torna esse acontecimento trágico injusto do
ponto de vista da lei. No caso do estupro, a gravidez se origina de ato ilícito
de força física, enquanto a gravidez de anencéfalo é livre em sua origem
(:408-409).
Assim o ministro atribui à natureza a anomalia fetal, por isso seria
impossível imputar a injustiça no surgimento da malformação. Isso justificaria
omitir-se de minorar o sofrimento da mulher, prezando a dignidade da pessoa
fetal acima da gestante. Vê-se aqui de novo um agente do Estado promovendo
o sofrimento social (Victora 2011), desta vez na falta total de empatia com
o sofrimento das gestantes.
Saúde
Peluso refuta o argumento de que a gestação de anencéfalo seria
perigosa para a saúde da mãe, caso compreendido na hipótese de aborto
terapêutico. Refuta assim o direito à saúde, posto que qualquer gravidez
implica risco teórico à saúde da gestante, mas nem por isso a lei autoriza a
prática de aborto (:410s).
Contra o legislador positivo
Segundo o ministro, a corte não pode se responsabilizar por uma
inovação normativa que a arguente (autora da ADPF) e os “adeptos” de sua
tese sabem que talvez não fosse adotada pelo Congresso Nacional “como
intérprete autorizado” do povo (:413).
Aqui se explicita a crítica do ministro ao ativismo judicial.
Dignidade do concepto
Peluso considera insustentável deduzir do rol de direitos sexuais e
reprodutivos “o reconhecimento da existência de poder absoluto de eliminar a
vida intrauterina” (:414s), e aponta como resultado “a completa reificação do
concepto, transformado em mero objeto disponível, sem nenhuma dignidade
jurídica” (:415).
26 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Segundo Diniz e Velez (2007), a posição do ministro se caracteriza pela
passionalidade jurídica e pela metafísica cristã e condensa a argumentação
moral contrária a reconhecer a interrupção da gestação em caso de
anencefalia como direito reprodutivo no país. A sustentação é que o aborto
seria o atentado contra uma vida em potencial, tese fundamentada em
pressupostos morais sobre a sacralidade da vida humana a ser protegida pelo
Estado. O feto é aqui um sujeito de direitos, nas palavras de Dworkin (2003).
Cabe reproduzir um trecho da dinâmica do debate após encerrada a
votação. O ministro Carlos Ayres Britto elogiou a fundamentação do voto do
ministro Peluso por ser coerente com as suas crenças.
Vossa Excelência acha que nascemos para morrer. Eu acho que nascemos para
o espetáculo da vida e, por isso, eu permaneço entendendo que não devemos,
jamais, a pretexto de defender quem sofre, no fundo, amar o sofrimento (:417).
Os votos dos juízes Lewandowski e Peluso contestam o argumento
feminista do “direito de dispor do próprio corpo”. Assinala-se a semelhança
desse posicionamento com a posição da Igreja Católica sobre aborto que
considera que biologicamente o filho não é parte do corpo da mãe, mas
sim seu hóspede.21 A defesa da vida, argumento identificado por Sales
(2015), também vai na direção de individualizar esse feto, tratando-o como
pessoa. Strathern reconhece que a biotecnologia provê novas maneiras
de conceitualizar a individualidade do feto, mas observa que a gestante é
um caso paradigmático para se pensar o parentesco como pessoas sendo
partes de pessoas (Strathern 2005:29). Nesse sentido, a autora apresenta
uma interpretação diferente acerca da relação mãe e feto: a mulher grávida
constitui um nexo de relações (nexus of relations). Assim, o relacionamento
entre mãe e feto não é o de parceiros iguais. A separabilidade do corpo
materno é a base da interdependência de gestante e feto: mãe e feto são
tanto separáveis como partes um do outro (Strathern 2005:30).
Com respeito à posição antiaborto representada pelos ministros
Lewandowski e Peluso, segundo Dworkin, tal posição conservadora “tem
por base uma concepção de santidade da vida que dá absoluta prioridade
ao investimento divino ou natural na vida” (2003:131). A vida aqui aparece
como valor holístico, apontando para a totalidade e não para o elemento, ou
para o indivíduo (Duarte 2004).
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 27
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Considerações finais
Em debate no julgamento está se o anencéfalo tem a condição de pessoa
humana na acepção delineada por Mauss (2003), ao falar da construção
histórica da noção de pessoa e do eu, ou se a gestante deve ter sua condição
de pessoa, sujeito de direitos, inclusive o da dignidade, apequenada pelo
entendimento da maternidade como suporte para o desenvolvimento fetal.
Tal visão foi explicitada nas ironias do ministro Peluso contra os direitos de
autonomia da mulher, negando qualquer importância ao seu sofrimento.
Peluso e Lewandowski assumem a posição em “defesa da vida”
identificada na audiência pública que precedeu o julgamento (Sales 2015).
Ambos ilustram a análise de Víctora sobre sofrimento coletivo, tanto em
contestar sofrimento na dimensão coletiva das diversas mulheres que o
experimentam como pela omissão das autoridades, o que repercute nas
políticas públicas, e nas interpretações da lei, acrescento.
Este artigo, ao identificar e analisar a argumentação emitida pelos
ministros do STF no julgamento da ADPF 54, com respeito à possibilidade de
antecipação de parto de anencéfalo, apresenta questões específicas distintas
da análise da audiência pública da ADI 351022 apenas com cientistas, e da
própria audiência da ADPF 54 que, além de cientistas, era composta também
de representantes de grupos religiosos e da sociedade civil (Luna 2015).
Nestas, não havia juristas. Ao se debruçar sobre a construção dos argumentos
por juristas, este artigo pode traçar paralelos com a análise anterior, mas
também contrastes. Percebeu-se por parte de vários ministros a necessidade
de diferenciar a noção de vida como definida pela ciência e aquela que pode
ser empregada no âmbito jurídico. Embora tópicos pudessem ser classificados
com ênfase maior em descrições biológicas, ou em questões muito específicas
de saúde, a dimensão social se ressalta para assegurar a leitura pelo prisma
do Direito, como na diferença entre a concepção biológica e a jurídica de vida.
O diagnóstico de anencefalia durante uma gestação reconfigura as
expectativas em relação à gravidez, por conta da inviabilidade do feto. Este,
na tipologia proposta por Boltanski (2004), deixa de ser um feto autêntico,
destinado ao nascimento e considerado como um sujeito, para se tornar um
feto tumoral, que é destinado ao nada.
Laqueur, em seu livro Making sex, afirma que, com o Iluminismo,
a natureza se torna o fundamento epistêmico para prescrições da ordem
social (1992), como se houvesse um corpo biológico a-histórico. Examinando
os votos de ministros do STF no julgamento da ADPF 54, julgamento no
qual estava em jogo a possibilidade de mulheres terem autonomia para
decidir continuar ou não uma gestação com o diagnóstico de anencefalia,
28 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
percebe-se a força dos fatores biológicos. O peso está na definição do que é
anencefalia, a viabilidade ou não do feto e os riscos físicos para a gestante.
Não por acaso, os ministros favoráveis à ação repetiram o parâmetro de
morte encefálica para se pronunciarem em favor da autonomia da gestante
decidir (princípio jurídico da liberdade) e da preservação de sua saúde (um
direito constitucional). Por outro lado, não teria sido o critério da morte
encefálica se este não estivesse reconhecido em um diploma legal, a lei de
transplantes. Os ministros se esforçam para mostrar a inexistência de mera
subordinação do Direito à Ciência, ponto que o voto de Rosa Weber levou
à exaustão, mas prevalece nas decisões uma lógica jurídica não atrelada à
lógica biomédica. São contrapostos dois fundamentos, como exemplifica a
feliz expressão do ministro Joaquim Barbosa: o feto anencefálico pode ser
biologicamente vivo, mas juridicamente morto.
Ao contrapor a autonomia da mulher e seu direito à saúde ao direito à
vida do nascituro, um feto anencefálico, ambas as posições são construídas
com base na configuração individualista de valores característica do Ocidente
moderno (Dumont 1997). Os dois lados falam em nome da dignidade
humana, seja a do feto, visto como um ser indefeso e deficiente, que teria
direito à vida, seja a da mulher, um ser formado que deve ter garantidos sua
autonomia reprodutiva e direito à saúde física e psíquica contra o Estado,
o qual a obrigaria a prosseguir uma gestação inviável. Usando o raciocínio
jurídico da ponderação, quando há princípios em disputa, a maioria dos
ministros considerou que prevaleceria como bem maior a proteção da mulher.
Para tanto, a maioria sopesou a inviabilidade do feto, mas vários evocaram
suas características que o afastariam da humanidade, em particular a total
incapacidade de adquirir consciência. Isso responde à pergunta do ministro
Lewandowski, que questionou por que considerar apenas a anencefalia,
quando há diversas anomalias incompatíveis com a vida. O anencéfalo
não tem consciência nem racionalidade em grau mínimo (daí a acusação
de eugenia), mas tem expectativa de vida praticamente nula, salvo casos
excepcionais.
Se o direito do feto à vida remete à sacralidade da vida humana
(Dworkin 2003), reconhecendo que a vida humana tem valor intrínseco, a
luta pelo direito do feto bem como pelos interesses da mulher mostra como
na modernidade o indivíduo é sagrado e o valor supremo, ponto revelado
por Durkheim quando afirmou que o individualismo seria a religião da
humanidade (1970). O valor da vida não é mero princípio biológico, mas
aponta para dimensões holistas presentes na configuração individualista
de valores. Através de seus votos, os ministros definem o que é sagrado
(Durkheim 1989) na sociedade brasileira no julgamento desse caso.
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 29
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A maioria dos votos compreendeu que obrigar uma mulher contra a vontade
a manter até o final a gestação de um feto inviável insultaria a dignidade da
pessoa humana, outro valor sagrado. Nesse sentido, a maioria dos ministros
foi sensível ao sofrimento das mulheres e de suas famílias, enquanto os
dois contrários, ao defenderem a vida fetal como valor absoluto, agravam
o sofrimento social (Víctora 2011) das gestantes que querem interromper
essa gestação inviável. Estendo à análise da controvérsia sobre o aborto
pontos do debate sobre a eutanásia: sofrimento e dignidade como categorias
fundamentais, a garantia do direito de autonomia como mecanismo
para evitar o sofrimento humano e a necessidade de refletir sobre os
modos possíveis de compreensão e respeito ao valor da vida (Menezes &
Ventura 2013).
Por fim, a despeito de concluir que o julgamento se dá enquanto
encenação da configuração individualista de valores, verifica-se que a
dimensão holista, referente à totalidade, está presente na orientação para
a vida (Duarte 2004). Além disso o próprio princípio da hierarquia é usado
nos raciocínios estabelecidos na prática da ciência jurídica. A hierarquia
implica a adoção de um valor: a relação hierárquica implica a orientação
para o conjunto em vez de para o elemento (Dumont 1997). Conforme
argumentado pela ministra Rosa Weber, o princípio da proporcionalidade,
aplicado à antecipação de parto de anencéfalo, entende que privilegiar
a vida de um feto inviável, independentemente de considerações sobre
os sentimentos e as decisões da gestante, seria desrespeitar ao extremo a
condição de sujeito dessa mulher e sua dignidade, o que implicaria privilegiar
o elemento (feto anencefálico inviável) sobre o conjunto (díade mãe-feto, ou
o nexo de relações, segundo Strathern 200523). O princípio da ponderação se
assemelha ao princípio hierárquico: quando há valores em disputa, no caso,
o direito à vida do anencéfalo, e o direito à dignidade e à autodeterminação
da mulher gestante, o ministro Peluso, representando a posição pró-vida e
antiaborto, hierarquiza a favor do feto, enquanto a maioria dos ministros
prioriza a mulher. Cada posição mostra o que é sagrado para os ministros
que votam: a vida do anencéfalo para uns, a vida da mulher e sua dignidade
e autonomia para a maioria.
Passados nove anos do julgamento da ADPF 54, a decisão do STF
se mantém, contudo, esse resultado estimulou iniciativas no Legislativo
(Câmara e Senado) para sustar seus efeitos, além de a anencefalia ter
sido incluída em diversos projetos de lei antiaborto, o que indica que a
disputa não cessou especialmente por parte de setores conservadores,
marcadamente religiosos (católicos carismáticos, evangélicos e espíritas),
enquanto os setores pró-escolha deixaram de se mobilizar no Legislativo no
tocante à anencefalia.
30 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Recebido em 09 de agosto de 2019
Aprovado em 26 de agosto de 2021
Naara Luna é antropóloga com doutorado no PPGAS, Museu Nacional, UFRJ.
Ela atua como professor associado na UFRRJ, onde é docente do PPGCS, e no
DCS. É autora do livro Provetas e clones: uma antropologia das novas tecnologias
reprodutivas e de diversos artigos versando sobre novas tecnologias reprodu-
tivas, o debate público sobre aborto e diversidade sexual, estatuto do feto e do
embrião, aspectos culturais das pesquisas com células-tronco, natureza e cultura
e a interface desses temas com o Direito e a religião. É pesquisadora CNPq com
bolsa de produtividade nível 2. Integra a comissão Laicidade e Democracia da
ABA e o GT Religión, neoliberalismo y pos/decolonialidad da CLACSO.
O artigo foi desenvolvido com apoio do CNPq no âmbito do projeto: “Aborto e
diversidade sexual no debate público sobre direitos humanos no Brasil: Estatuto
do Nascituro, ‘ideologia de gênero’ e cura gay na interface Natureza/Cultura,
Direito e Religião”.
[Link]
E-mail: naaraluna2015@[Link]
Notas
1 Foi o caso de Gabriela, cuja solicitação judicial de interromper a gravidez
foi acolhida pela promotora, mas negada pelo juiz e pelo tribunal, que emitiu um
habeas corpus em favor do feto anencefálico, motivando Débora Diniz a escrever um
habeas corpus em favor da gestante (Diniz 2014).
2 Segundo o Dicionário Jurídico: “uma ADPF “tem por objeto evitar ou reparar
lesão a preceito fundamental decorrente da Constituição, resultante de qualquer
ato (ou omissão) do Poder Público”. Disponível em: [Link]
dicionario/exibir/1130/Arguicao-de-Descumprimento-de-Preceito-Fundamental-
ADPF. Acesso em 02/04/2020.
3 Autorizar o aborto em caso de anencefalia seria um ato eugênico do Estado
brasileiro na perspectiva dos questionadores da ação, o que, segundo Diniz, seria
“o principal argumento religioso contra a ação nos anos finais da tramitação no
STF” (:165). Mediante análise das audiências públicas, é possível dizer que era um
argumento usado por religiosos, mas não um argumento religioso (Luna 2013, 2015).
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 31
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
4 Segundo o artigo “A Constituição e o Supremo”, podem solicitar a ADPF:
o presidente da República, mesa do Senado, mesa da Câmara dos Deputados, mesa
da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do DF, governador do estado
ou do Distrito Federal, partido político com representação no Congresso Nacional.
Disponível em: [Link]
Acesso em 02/04/2020.
5 A expressão “antecipação terapêutica de parto” e a alegação de não ser
aborto constituem um artifício retórico na batalha discursiva para aprovar a legalidade
do procedimento de interromper a gravidez sem criar um novo excludente de ilicitude
fora da lei vigente, o que poderia invalidar a ação logo de início. Trata-se de uma
etapa na controvérsia pública sobre aborto, tópico que será definido adiante.
6 O acórdão do julgamento em seu inteiro teor publicado no site do STF tem
433 páginas. Para evitar a excessiva extensão do artigo que a cópia literal implicaria,
os argumentos serão resumidos, tentando manter a proximidade com o vocabulário
usado. Para fins de conferência, as páginas das citações serão indicadas.
7 Marcela de Jesus teve diagnóstico de anencefalia durante o pré-natal.
Sua sobrevida excepcional de um ano e oito meses levou diversos especialistas a
questionar esse diagnóstico, ainda na audiência pública da ADPF 54 em 2008, quando
foi mencionada para questionar a antecipação terapêutica de parto, defendendo que
a anencefalia não implicaria letalidade total na vida extrauterina, ou como um erro
de diagnóstico por parte dos que eram favoráveis à tese da ADPF 54. A menina foi
citada nominalmente poucas vezes no acórdão do julgamento: além do relator, ela
é mencionada por Rosa Weber repetindo o voto do relator como erro de diagnóstico
e várias vezes por Cézar Peluso como contraponto à certeza de diagnóstico. É
interessante que uma figura tão central no debate em momento anterior, no julgamento
é deixada de lado em função da posição da maioria de ministros favoráveis à tese da
ADPF 54.
8 Baseado na Resolução CMF 1480/97 que autoriza a doação dos órgãos de
anencéfalo,
9 Isso significa que lei protege ou tutela elementos fundamentais para a vida
em sociedade, os chamados bens jurídicos (Zoghbi 2013), no caso em questão, a vida
do feto anencefálico, e que o relator não considera justificada essa proteção.
10 Entre os riscos físicos são citados: aumento de morbidade e risco,
apresentação fetal anômala que obriga ao parto cesáreo, poli-hidrâmnio (aumento
do líquido amniótico) e, em função disso, hipertensão, parto prematuro, hemorragia
pós-parto e prolapso de cordão, diabetes, gravidez prolongada, hipotonia do útero
pós-parto e hemorragia.
11 “Respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X,
e 6º, cabeça, da Carta da República” (:69)
12 Segundo a ministra, é crime por definição praticado apenas pela mãe no
período puerperal (:105).
32 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
13 “Religiosos” em suas palavras, mencionando apenas países de cultura
cristã: Itália, Alemanha, Espanha e Estados Unidos
14 Não encontrei na cobertura da imprensa sobre o julgamento nenhum
comentário polemizando essa colocação do ministro, provavelmente por não ter
assumido a posição contrária ao direito de escolha em caso de aborto.
15 Antijurídico é o que contraria a lei penal, viola bens jurídicos protegidos
pela lei: aqui negar à mulher o seu direito seria antijurídico.
16 Sintetizo aqui a análise de Weber no capítulo sobre Sociologia do Direito
(1998).
17 Mauss sintetiza como se constitui historicamente essa categoria de
pensamento em sua conclusão: “de uma simples mascarada, à mascara; de um
personagem a uma pessoa, a um nome, a um indivíduo, deste a um ser com valor
metafisico e moral; de uma consciência moral a um ser sagrado; deste a uma forma
fundamental de pensamento e ação; foi assim que o percurso se realizou” (2003:397).
18 O ministro cita a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, de 1993, a
Conferência de Cairo sobre População e Desenvolvimento, de 1994, e a IV Conferência
Mundial sobre a Mulher, de 1995, realizada em Pequim (:318). Cita a Declaração
e o Programa de Ação de Viena adotados pela Conferência Mundial sobre Direitos
Humanos, promovida pela ONU, que reconhece que os direitos das mulheres são
inalienáveis e que “constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos
universais” (:319-320).
19 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados
à Saúde, Décima Revisão.
20 Exceções em que lei não pune o aborto: estupro ou risco de vida da mãe.
21 Essa expressão foi obtida do manual Keys to bioethics, adotado pela Igreja
Católica como material para participantes da Jornada Mundial da Juventude em
2013.
22 Referente ao uso de embriões humanos restantes de reprodução assistida
em pesquisa para obtenção de linhagens de células-tronco.
23 Embora a biotecnologia apresente novas formas de conceber a
individualidade do feto, argumento apontado por Strathern acima, a autora recorda
que essa percepção não deslocou no contexto ocidental a doutrina jurídica de que
o feto não tem personalidade legal. Considerando que o feto depende do corpo
materno para sua sobrevivência, mas que o próprio corpo da mulher é modificado
pela gravidez, em vez de afirmar a individualidade desses entes, segundo Strathern,
a gestante e o feto são tanto separáveis como partes um do outro, por isso a imagem
do nexo de relações (2005:29-30).
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 33
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
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O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 35
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
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36 O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA:
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O DIREITO AO ABORTO EM CASO THE RIGHT TO ABORTION IN
DE ANENCEFALIA: UMA ANÁLISE CASES OF ANENCEPHALY: AN
ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO ANTHROPOLOGICAL ANALYSIS
DA ADPF 54 PELO SUPREMO OF THE ADPF 54 TRIAL BY THE
TRIBUNAL FEDERAL SUPREME FEDERAL COURT
Resumo Abstract
O artigo analisa os votos dos ministros The article analyses the arguments of the
e o debate do plenário no julgamento justices and the debates that took place
da Arguição de Descumprimento de during the plenary session of the Supre-
Preceito Fundamental 54 (ADPF 54) me Federal Court (Brazil) in the trial of
realizado no Supremo Tribunal Federal, the Accusation of Non-Compliance with
nos dias 11 e 12 de abril de 2012, que a Fundamental Precept (ADPF 54) that
discutiu a autorização para aborto em took place on April 11th and 12th 2012.
caso de gestação de feto anencefálico, The trial discussed the authorization of
chamada de “antecipação terapêutica do abortions in cases of fetal anencephaly,
parto”. O julgamento constitui parte da called “therapeutic anticipation of birth”.
controvérsia sobre o direito ao aborto na The trial is an aspect of the controversy
sociedade brasileira. Sua análise revela surrounding the right to abortion in
que as diferentes posições no debate, na Brazilian society. An analysis of the
defesa do direito do feto anencefálico à proceedings reveals that the different
vida, ou na direção da autonomia repro- arguments on the issue, whether uphol-
dutiva das mulheres, estão ancoradas na ding the fetus’s right to life or tending
configuração individualista de valores. towards the reproductive autonomy of
Palavras-chave: Aborto, Supremo women, were anchored in an individua-
Tribunal Federal, ADPF 54, Anencefalia, listic configuration of values.
Direitos humanos. Keywords: abortion, Federal Supreme
Court (Brazil), ADPF 54, anencephaly,
human rights.
O DIREITO AO ABORTO EM CASO DE ANENCEFALIA: 37
UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DO JULGAMENTO DA ADPF 54 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
EL DERECHO AL ABORTO EN CASO
DE ANENCEFALIA: UN ANÁLISIS
ANTROPOLÓGICO DEL JUICIO
DE ADPF 54 REALIZADO POR EL
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Resumen
El artículo analiza los votos de los ma-
gistrados y el debate del plenario en el
juicio del Arreglo de Incumplimiento
de Precepto Fundamental 54 (ADPF
54) realizado en el Supremo Tribunal
Federal los días 11 y 12 de abril de 2012,
que discutió la autorización del aborto
en caso de anencefalia fetal, llamada
de “anticipación terapéutica del parto”.
El juicio forma parte de la controversia
sobre el derecho al aborto en la sociedad
brasileña. Su análisis revela que las
diferentes posiciones en el debate, en
la defensa del derecho del feto anence-
fálico a la vida, o en la dirección de la
autonomía reproductiva de las mujeres,
están ancladas en la configuración indi-
vidualista de valores.
Palavras clave: aborto, Supremo Tribunal
Federal (Brasil), ADPF 54, anencefalia,
derechos humanos.