Papers by Ana Carla Felix

e ao oceano de suas manhas 39 . Na era clássica, explica-se de bom grado a melancolia inglesa pel... more e ao oceano de suas manhas 39 . Na era clássica, explica-se de bom grado a melancolia inglesa pela influência do clima marinho: o frio, a umidade, a instabilidade do tempo, todas essas finas gotículas de água que penetram os canais e as fibras do corpo humano e lhe fazem perder a firmeza, predispõem à loucura 40 . Finalmente, deixando de lado toda uma imensa literatura que iria de Ofélia à La Lorelei, citemos apenas as grandes análises meio antropológicas, meio cosmológicas de Heinroth, que fazem da loucura como que a manifestação no homem de um elemento obscuro e aquático, sombria desordem, caos movediço, germe e morte de todas as coisas, que se opõe à estabilidade luminosa e adulta do espírito 41 . Mas se a navegação dos loucos se liga, na imaginação ocidental, a tantos motivos imemoriais, por que tão bruscamente, por volta do século XV, esta súbita formulação do tema, na literatura e na iconografia? Por que vemos surgir de repente a silhueta da Nau dos Loucos e sua tripulação insana invadir as paisagens mais familiares? Por que, da velha aliança entre a água e a loucura, nasceu um dia, nesse dia, essa barca? É que ela simboliza toda uma inquietude, soerguida subitamente no horizonte da cultura européia, por volta do fim da Idade Média. A loucura e o louco tornam-se personagens maiores em sua ambigüidade: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens. Antes de mais nada, toda uma literatura de contas e moralidades. Sua origem, sem dúvida, é bem remota. Mas ao final da Idade Média, ela assume uma superfície considerável: longa série de "loucuras" que, estigmatizando como no passado vícios e defeitos, aproximam-nos todos não mais do orgulho, não mais da falta de caridade, não mais do esquecimento das virtudes cristãs, mas de uma espécie de grande desatino pelo qual, ao certo, ninguém é exatamente culpável mas que arrasta a todos numa complacência secreta 42 . A denúncia da loucura torna-se a forma geral da crítica. Nas farsas e nas sotias, a personagem do Louco, do Simplório, ou do 39 De LANCRE, De !'inconstante des mauvais anges, Paris, 1612. 40 G. CHEYNE, The English Malady, Londres, 1733. 41 Necessário acrescentar que o «lunatismo» não é estranho a esse tema. A lua cuja influência sobre a loucura foi admitida durante séculos, é o mais aquático dos astros. O parentesco da loucura com o sol e o fogo surgiu bem mais tarde (Nerval, Nietzsche, Artaud). 42 Cf. por exemplo, Des six manières de fols; ms. Arsenal 2767. exatamente esta silhueta de pesadelo que é simultaneamente o sujeito e o objeto da tentação; é ela que fascina o olhar do ascetapermanecendo uma e outro prisioneiros de uma espécie de interrogação no espelho, a permanecer indefinidamente sem resposta, num silêncio habitado apenas pelo bulício imundo que os cerca 61 . O grylle não mais lembra ao homem, sob uma forma satírica, sua vocação espiritual esquecida na loucura de seu desejo. É a loucura transformada em Tentação: tudo que nele existe de impossível, de fantástico, de inumano, tudo que nele indica a contranatureza e o formigamento de uma presença insana ao rés-dochão, tudo isso, justamente, é que lhe atribui seu estranho poder. A liberdade, ainda que apavorante, de seus sonhos e os fantasmas de sua loucura têm, para o homem do século XV, mais poderes de atração que a realidade desejável da carne. Qual é, portanto, esse poder de fascínio que, nessa época, se exerce através das imagens da loucura? De início, o homem descobre, nessas figuras fantásticas, como que um dos segredos e uma das vocações de sua natureza. No pensamento da Idade Média, as legiões de animais, batizados definitivamente por Adão, ostentavam simbolicamente os valores da humanidade 62 . Mas no começo da Renascença, as relações com a animalidade se invertem: a besta se liberta, escapa do mundo da fábula e da ilustração moral a fim de adquirir um fantástico que lhe é próprio. E, por uma surpreendente inversão, é o animal, agora, que vai espreitar o homem, apoderar-se dele e revelar-lhe sua própria verdade. Os animais impossíveis, oriundos de uma imaginação enlouquecida, tornaram-se a natureza secreta do homem, e quando no juízo final o pecador aparece em sua nudez hedionda, percebe-se que ele ostenta o rosto monstruoso de um animal delirante: são esses corujões cujos corpos de sapos misturam-se, no Inferno de Thierry Bouts, à nudez dos danados; são, à maneira de Stefan Lochner, insetos alados, borboletas com cabeças de gado, esfinges com élitros de besouros, pássaros com asas inquietantes e ávidas, como mãos; é o grande animal de presa de dedos nodosos que figura na Tentação de Grünewald. A animalidade escapou à domesticação pelos valores e pelos símbolos humanos; e se ela agora fascina o 61 É possível que Bosch tenha feito seu auto-retrato no rosto da «cabeça com pernas» que figura no centro da Tentação de Lisboa. Cf. BRION, Jérôme Bosch, p. 40. 62 Na metade do século XV, o Livre des Tournois de RENÉ D'ANJOU constitui ainda um bestiárjo moral. dos vícios. A partir do século XIII, é comum vê-la figurar entre os maus soldados da Psicomaquia 66 . Em Paris como em Amiens, ela participa das más tropas e dessas doze dualidades que dividem entre si a soberania da alma humana: Fé e Idolatria, Esperança e Desespero, Caridade e Avareza, Castidade e Luxúria, Prudência e Loucura, Paciência e Cólera, Suavidade e Dureza, Concórdia e Discórdia, Obediência e Rebelião, Perseverança e Inconstância. Na Renascença, a Loucura abandona esse lugar modesto, passando a ocupar o primeiro posto. Enquanto que em Hugues de Saint-Victor a árvore genealógica dos Vícios, a do Velho Adão, tinha por raiz o orgulho 67 , a Loucura, agora, conduz o coro alegre de todas as fraquezas humanas. Corifeu inconteste, ela as guia, as anima e as batiza: Reconheçam-nas aqui, no grupo de minhas companheiras... A que tem as sobrancelhas franzidas, é Filáucia (o Amor-Próprio). Aquela que vocês vêem rir com os olhos e aplaudir com as mãos, é Colácia (a Adulação). A que parece meio adormecida, é Leté (o Esquecimento). A que se apóia sobre os cotovelos e cruza as mãos, é Misoponia (a Preguiça). A que está coroada de rosas e untada de perfumes, é Hedoné (a Voluptuosidade). Aquela cujos olhos erram sem se fixar é Anóia (o Estouvamento). A que tem bastante carne e se mantém próspera é Trifé (a Indolência). E entre essas jovens mulheres, eis dois deuses: o do Bem-Comer e o do Sono Profundo 68 . Privilégio absoluto da loucura: ela reina sobre tudo o que há de mau no homem. Mas não reina também, indiretamente, sobre todo o bem que ele possa fazer? Sobre a ambição que faz os sábios políticos, sobre a avareza que faz crescer as riquezas, sobre a indiscreta curiosidade que anima os filósofos e cientistas? Louise Labé repete a mesma coisa depois de Erasmo; e Mercúrio, para ela, implora aos deuses: Não deixem que se perca esta linda Senhora que tanto contentamento lhes deu 69 . Mas esta nova realeza pouca coisa em comum tem com o reino 66 É necessário observar que a Loucura não ap arecia nem na Psychomachie de PRUDÉNCIO, nem no Anticlaudianus de ALAIN DE LILLE, nem em Hugues de Saint-Victor. Sua presença constante dataria apenas do século XIII?
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